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segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A inesquecível Profe

Eu estava no quarto semestre do curso de Direito quando me inscrevi para fazer a disciplina de Direito Penal 3. Depois de algumas experiências negativas com professores pouco profissionais e sem didática eu simplesmente não esperava nada do semestre que iniciava. Cheguei na sala de aula um pouco mais cedo, como de costume, e escolhi um dos lugares mais à frente entre os assentos. Logo reconheci alguns rostos de colegas que estavam no mesmo barco que eu e formamos um pequeno grupo, sentando lado a lado em frente à mesa da professora, que chegou uns quinze minutos antes do horário de início oficial e cumprimentou a todos com um simpático sorriso. Uma mulher verdadeiramente bonita, vestida com elegância e usando um tom firme, porém hospitaleiro, em sua voz que se harmonizava perfeitamente com o seu olhar. Uma pessoa digna e respeitável, foi a impressão que tive ao vê-la pela primeira vez. 

De forma protocolar, iniciou a aula se apresentando e falando sobre seu currículo impecável. De fato, há professores com o dobro da idade que não podem ostentar títulos e experiência naquele nível. Explicando como seria o semestre, demonstrou seriedade e compromisso. Deixou claro que não fazia concessões, que não haveria tolerância com atrasos na entrega de trabalhos e que as provas testariam com contundência o conteúdo ensinado. Mas também tranquilizou, afirmando que o esforço pelo aprendizado seria recompensado. Não era adepta da tortura psicológica com os alunos e nem recorreria à “pegadinhas” que prejudicassem as notas ou o desempenho. Seria cobrado dedicação e resultado, mas sem brincar com a vida das pessoas que estavam ali investindo tempo e dinheiro por um futuro melhor, como fazem alguns professores imaturos.

E assim foi. O semestre fluiu intenso, com aulas profundas a respeito do funcionamento do sistema penal brasileiro, concurso de crimes, regressão, detração, livramento, extinção de punibilidade. Exemplos de sentenças, acórdãos, súmulas. E, é claro, o temível cálculo de pena, que nos levou a voltar no tempo e fazer contas com frações em pleno nível superior, depois de não ter contato com isso desde o ensino médio (no meu caso, cerca de vinte anos atrás). Tudo aconteceu como ela tinha dito no primeiro dia de aula. Muita matéria para estudar, muitas referências para expandir o conhecimento, bastante coisa pra ler e anotações para fazer nos códigos (os permitidos lembretes feitos com post-it no Vade Mecum). Provas que resumiam o conteúdo, trabalhos que exercitavam conceitos. Na época, era necessário escolher um professor dentre as disciplinas cursadas no semestre para que fosse orientado um trabalho extra, que contabilizava pontos para todas as matérias, a chamada APS (Atividade Prática Supervisionada). Nosso grupo da frente da sala escolheu ela como supervisora e, juntos, produzimos um trabalho de pesquisa sobre o uso da tecnologia Blockchain no enfrentamento aos crimes de corrupção. Um trabalho simples e desafiador, que nos enriqueceu tanto pela pesquisa em si quanto pela oportunidade de sermos supervisionados com tanta atenção e esmero. Ao final da jornada do semestre, todos estávamos muito satisfeitos e encantados com aquela professora tão dedicada e atenciosa. Aprendemos muito e criamos um grau de admiração pela qualidade das aulas, pela didática, pelo carisma, pela seriedade com que os assuntos eram tratados. 

Rapidamente descobri que não era o único a gostar tanto das aulas dela. Além do meu grupo, diversos colegas de outras turmas teciam elogios incansáveis pelo trabalho que ela realizava. Um certo dia, no ano seguinte, o Diretório Acadêmico organizou no período vespertino um pequeno evento, uma palestra sobre uma viagem pessoal incrível que ela havia feito, uma expedição para o Polo Norte. Não tinha nada a ver com Direito ou assuntos assemelhados, era apenas um encontro para ela mostrar fotos e contar coisas da viagem. Por ser num horário um pouco mais cedo, eu cheguei quase na hora de começar a palestra, e quase não achei lugar para sentar. Tive que me contentar com uma cadeira bem ao fundo, porque a sala estava lotada. Mais cem lugares ocupados. E no decorrer da apresentação foi chegando mais gente, que sentava no chão ou ficava em pé, para poder participar daquele momento com uma pessoa tão querida e admirável. O carinho de todos por aquela Profe era imenso.

Isso tudo só fazia aumentar minha admiração por aquela mulher forte, segura, dona de uma mente brilhante e com uma habilidade única para ensinar. Os alunos que levavam o curso a sério tinham nela uma referência, e, mais do que isso, uma fonte de inspiração. Todos queríamos absorver um pouco daquele brilho encantador. Todos sentíamos orgulho de ser seus alunos.

Meses depois deste evento, no semestre seguinte, tive a oportunidade de me inscrever em outra disciplina com ela. Faria Processo Civil 1, minha primeira disciplina de processo no curso. Fiquei ansioso, sabia que seria difícil, mas com ela à frente estava tudo bem. Seria um ótimo semestre. Estava tão feliz na primeira aula que fotografei ela diante do quadro branco e enviei a foto para um amigo, o Mauro, como que contando vantagem por estar ali. Ele brincou com minha alegria e desejou sorte. Tudo daria certo.

Porém, como é comum na vida, alguns fatos acontecem fora dos nossos planos e as coisas mudam radicalmente. Na segunda semana de aula recebi uma mensagem da instituição dizendo que ela havia sido “desligada do quadro de professores”, e que providenciariam um substituto. Segundo disseram os alunos pelos corredores, o motivo teria sido a postura dela perante a administração da faculdade. Na visão dela, allgumas mudanças implementadas prejudicariam os alunos isso teria causado um grande atrito, com ela enfrentando a vontade da coordenação do curso e da gestão. Teria, inclusive, se posicionado publicamente contra algumas mudanças, o que para eles era inaceitável. Demitiram ela já com o semestre iniciado, nos privando de algo que queríamos muito, que era cursar uma das disciplinas mais importantes de todo o curso com a melhor professora. 

Fiquei muito triste. Decidi cancelar a disciplina em protesto, mas fui convencido a não fazer isso por uma colega que gostava tanto daquela Profe quanto eu, a Ví, com quem fui desabafar o quanto estava frustrado e revoltado. Segundo me disse a colega, eu me prejudicaria em algo que não faria diferença para a instituição e, gostando ou não, teria que concluir aquela disciplina com o outro professor no futuro. Achei coerente e optei por desistir de desistir. Muito contrariado, acabei seguindo em frente e concluindo o semestre e engolindo aquele sapo. 

Apesar de muito chateado, uma coisa me deixava esperançoso, eu acreditava que ela era boa demais para o afastamento ser uma situação permanente. Tinha esperança que as diferenças se resolvessem e chamassem ela de volta. Eu queria ser aluno dela mais vezes, queria fazer meu trabalho de conclusão de curso com ela. Aquele desligamento deveria ser algo temporário, no futuro eu teria sim oportunidade de estudar com ela de novo...

Terrível engano.

Na manhã do dia 8 de setembro eu recebi uma mensagem no grupo da faculdade, dizendo  que a nossa estimada Profe Suelen havia falecido.

Fiquei devastado. Não conseguia acreditar. Deveria ser algum engano, ela era jovem, tinha só 34 anos, uma carreira incrível. Não fazia sentido nenhum aquela notícia! Mas, infelizmente, era verdade. Em situações que não foram publicadas e que disseram estar sendo investigadas pela polícia, o corpo dela foi encontrado em casa. Muitos nos grupos do WhattsApp disseram que ela teria sido vítima de um tiro, mas ninguém tinha certeza de nada. Especulavam bastante, diziam todo tipo de coisa. A comoção foi geral, o celular começou a ferver de mensagens nos grupos, ninguém entendia o que tinha acontecido. Alguns colegas vieram falar comigo em privado, conversar um pouco, tentar entender, desabafar. Foi um dia horrível em que deixou todo mundo perplexo.  Não importa como, não importa a razão, nossa Profe tinha nos deixado para sempre. Tive uma reação muito forte, fiquei muito pra baixo. Senti meu corpo febril, um desânimo brutal tomou conta de mim. Esse ano de 2020 tem sido macabro em diversos aspectos, com muitas tragédias. Agora mais isso. Perco alguém por quem nutri admiração como poucas vezes senti na vida. E dessa forma tão violenta, tão terrível. Fiquei acabado por dias. Amigos e pessoas próximas notaram meu abatimento, que falhei ao tentar disfarçar. Estava muito triste. Na aula online que participei, a turma estava mais silenciosa que o normal, e uma colega que não conheço pediu desculpas para o professor por não participar muito da aula naquele dia, e todos sabíamos porque.

É uma situação muito, muito triste em que uma vida preciosa deixou esse mundo e o espaço que deixou está sendo sentido por muitas pessoas diferentes. Um buraco nos nossos corações. Por isso estou aqui agora, escrevendo como forma de lidar com o que sinto. 

Resolvi registrar aqui essa história para que fique como uma silenciosa homenagem à alguém que passou pela vida espalhando o bem. Ensinando pelo exemplo, com dedicação e carinho pelo trabalho como poucos conseguem ter. O tempo vai seguir seu rumo, a vida vai continuar. Mas certamente, apesar da curta experiência de convívio, as marcas que essa inesquecível Profe deixou são para sempre. Nunca vou esquecer o quanto ela se dedicava aos alunos, o quanto levava a sério sua função. A habilidade incrível que tinha de mesclar rigidez com doçura. Nunca vou esquecer os slides com gifs animados para descontrair em dias de prova, a coragem de externar opiniões politicamente incorretas, as piadas de cultura pop que só os nerds seriam capazes de compreender, o senso de humor leve para falar sobre exemplos práticos aterradores, as brincadeiras sobre nosso grupo da frente ser “a mafia do iogurte” (piada interna). Embora tenha deixado esse mundo, essa Profe magnífica estará viva para sempre em nossa memória, em nossos corações. E com toda certeza influenciará os profissionais que muitos de nós nos tornaremos no futuro. Sua passagem foi breve e importante. Oro para que o Eterno acolha muito bem sua alma e lhe transmita todo o amor que sentimos. Que esteja em bom lugar, se sentindo feliz, junto das almas de pessoas que ela amou aqui e já estão do lado de lá também. Nós, alunos, seguiremos em frente com os estudos, certamente ela iria querer isso. Ela, que foi a melhor, iria querer o melhor para nós. Descanse em paz, Profe Suelen. Obrigado por tudo.



Caxias do Sul, 06 de março de 2020. Primeira aula de Processo Civil 1.


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