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quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Passeio no cemitério

A morte é, desde sempre, o mais intrigante de todos os mistérios. Por que nós, seres humanos, dotados de autoconsciência e com potencial criativo tão ilimitado, somos condenados a morrer? O que falta para nos desgarrarmos dessa equidade biológica? O que acontece com as consciências abstratas das pessoas que morrem? Aliás, falando em consciência, é uma verdade bastante inconveniente a de que a ciência humana mais avançada de todos os tempos ainda não tenha nos explicado o que é e, sequer, onde exatamente ocorre o fenômeno da consciência. E muito menos o que acontece com ela quando o corpo perde a vida. Mesmo com todo o conhecimento acumulado que temos, com todos os métodos de pesquisa e recursos tecnológicos, esse mistério primordial ainda persiste e intriga. Pra mim, a morte inspira respeito e autoridade. Sinto-a como um mistério intocável, uma sombra que se estica por todo o universo. Algo para se falar baixo e com calma quando se aborda, sem tentar fazer graça ou ressignificar. Algo constante e comum a tudo e a todos, mas que deve ser tratado como extraordinário e único. Há algo sagrado na morte, mesmo quando tratamos puramente da morte biológica. Com a proximidade do dia 2 de novembro, o dia reservado à lembrança dos finados, algumas memórias surgem.

Acredito que a visão que tenho sobre esse tema surgiu na infância. Minha família tinha o hábito de ir ao cemitério em datas especiais. Lembro de diversos momentos em que andei sozinho e explorei os corredores entre os túmulos no cemitério São Miguel e Almas, em Porto Alegre. Um lugar imenso, terreno fértil para a grande curiosidade com que nasci. Lembro de andar por muito tempo dentro do cemitério, explorar o local como se quisesse conhecer toda sua extensão. Provavelmente nunca cheguei nem perto disso mas, na minha visão de criança, eu sentia que podia conhecer tudo. Olhava os túmulos, mirava as fotografias, nomes e datas. Ficava impressionado com as estátuas de bronze, de concreto, de mármore, muitas imagens de anjos e da Virgem Maria. Bustos, cruzes, imagens de corpo inteiro de pessoas em tamanho real. Imagens muito marcantes para uma mente tão jovem. Quem nos levava ao cemitério era minha mãe. Anualmente íamos prestar respeito aos entes queridos falecidos, que, no caso da minha mãe, contava com a memória de um irmão e de um filho. Num dos recordos mais presentes que tenho, eu devia ter por volta de dez anos de idade. Lembro de irmos de ônibus até Porto Alegre e descermos numa rua asfaltada, em um dia ensolarado e quente. Passarmos andando entre muitos vendedores de flores nas calçadas abarrotadas de pessoas e subirmos um morro até a entrada do cemitério. Um enorme portão de ferro por onde um grande fluxo de pessoas lentamente adentrava o local. Eu andava rápido, cuidando para não perder de vista minha mãe, que estava de mãos dadas com meu irmão mais novo. Logo na entrada passamos por uma imagem imensa, com alguns metros de altura e de extensão, feita de bronze. Uma estátua da Virgem com dezenas de anjos com aparência infantil segurando-se no tecido do seu longo vestido. Lembro de ficar meio hipnotizado pelo esplendor da estátua, que era banhada pela abundante luz do sol. Magnífica e um tanto intimidadora. Avançamos, passando por diversas outras estátuas que decoravam túmulos luxuosos, construções com mármore e granito, mausoléus de famílias que pareciam pequenas casas, onde eu achava estranho ver “uma casinha para quem está morto”. Seguíamos pelo caminho até chegar numa escadaria que nos levava ao prédio onde ficam as gavetas com sepulcros organizados em paredes, como um grande condomínio mortuário. Era ali que minha família possuía um jazigo. Então andávamos pelos corredores do gigantesco prédio, subíamos e descíamos escadas por longos minutos. O chão era de lajotas e, conforme chegávamos mais próximo do nosso destino, o movimento de pessoas ao nosso redor era cada vez menor. Cada grupo de pessoas ia achando os seus entes queridos sepultados e ficando para trás, enquanto nós continuávamos seguindo até chegar na gaveta da nossa família. Quando chegávamos na parede certa, rapidamente procurávamos nossos parentes pelo nome inscrito em relevo na pedra que servia de porta. Então minha mãe limpava a frente do túmulo e colocava flores. Meu irmão e eu olhávamos atentamente enquanto ela trabalhava. Depois de arrumar, ela olhava para a imagem formada com os nomes dos nossos parentes falecidos queridos e ficava brevemente contemplando em silêncio. Nesses momentos eu costumava me afastar dela e sair andando sozinho pelos corredores. Olhando por sobre as muretas que delimitavam os andares. No final de um dos corredores ficava a parede de trás do prédio das gavetas, devíamos estar no quarto ou quinto andar, de onde se podia ver por sobre um muro, cerca de vinte metros abaixo, um enorme terreno com centenas de cruzes brancas fincadas no topo de morros de terra. Certa vez minha mãe me disse que ali eram enterrados os indigentes, moradores de rua, pessoas sem família que eram sepultados em covas estreitas e alinhadas. Lembro de que em uma daquelas covas, numa das vezes em que fui lá olhar de cima do prédio, havia uma coroa de flores jogada no chão, sobre uma das cruzes que despontava no meio do círculo floral. Aquilo despertou minha curiosidade, me perguntei como a pessoa que colocou aquele arranjo sabia que o corpo do seu ente querido estava realmente ali, sendo que todos os túmulos eram iguais e aparentemente não havia identificação. Pelo menos não como nos sepulcros do prédio onde eu estava ou no resto do cemitério por onde andei.

Eu gostava de andar pelos corredores, galerias, observar as fotos e ler os epitáfios, calcular a idade das pessoas subtraindo a data da morte da data de nascimento. Jovens, idosos, homens, mulheres… Todo tipo de gente que, geralmente, eu estava acostumado a ver viva, naquelas imagens estava morta. O que me dava uma sensação estranha. Uma vez, em um dos passeios, eu encontrei numa das paredes o túmulo de uma criança. Era possível saber que era criança pelas datas estampadas e pela foto em preto em branco que decorava a pedra. O que chamava mais a atenção era que o rosto da criança era deformado. A boca e o nariz eram unidos em uma cavidade só, no meio da face. Fiquei bastante perturbado com aquela imagem, pensando no quanto deve ter sido difícil ser aquela criança, e no quanto a família deve ter sofrido. Foi uma das primeiras vezes que vi a imagem de uma pessoa deformada.

O prédio das gavetas era aberto no centro, como um imenso poço de luz que abrigava um jardim no andar térreo. Do alto dos andares superiores podia-se ver o movimento das pessoas ao redor do jardim. Todos os corredores eram cheios de gente. Eu ficava olhando as pessoas conversarem umas com as outras, limpando e decorando os túmulos como minha mãe fazia, outras em silêncio ou chorando. Ninguém estava ali por diversão ou para passar o tempo. Todos passavam uma sensação de estar cumprindo um compromisso. A tristeza solene no ar dava um ar de profundo respeito a tudo e a todos. Não havia nada engraçado e nem leve, era tudo cinza. Tudo denso. As pessoas falavam baixo, o cheiro de flores e velas queimadas era enjoativo, mas ninguém se importava. Nem eu. Fui criado em uma família católica onde me ensinaram a respeitar lugares e objetos por serem sagrados. Quando eu ia a uma igreja tomava cuidado até com a forma como eu olhava para os objetos, e principalmente com o que eu falava. O respeito era demonstrado com zelo e seriedade. Essa sensação que as igrejas e locais sacros me despertavam também era presente no cemitério. Havia religiosidade e espiritualidade ali. As pessoas estavam sofrendo e todos respeitavam o espaço de todos.

Depois de passear eu voltava para onde minha mãe estava. Ás vezes ela estava conversando com alguma estranha, encontrava alguém conhecido ou uma das minhas tias que acabavam indo ao cemitério no mesmo dia. Após prestar as homenagens ao nossos parentes, nós saíamos andando pelo cemitério em direção à rua, para irmos embora. Não tenho certeza se fazíamos o mesmo caminho para voltar ou se íamos por outro lado. Mas lembro de ficar observando atentamente tudo novamente. Admirado com as estátuas enquanto a quantidade de pessoas ao nosso redor ia aumentando, até chegarmos novamente no grande portão e sairmos.

Em Porto Alegre existem vários cemitérios um ao lado do outro, alguns de diferentes religiões. Numa das vezes em que nos dirigíamos ao ponto de ônibus para ir embora, fizemos um outro caminho e passamos pelo portão de um cemitério que ficava próximo ao que tínhamos ido, no qual foram depositados no chão uma grande quantidade de objetos de cunho ritualístico. Uma tábua com pregos cravados em forma de pentagrama no qual haviam grudado um pedaço de carne que parecia ser o fígado de um animal, um objeto grande feito de cera com a forma de uma cabeça humana, cruzes, facas, velas, taças, muita comida e garrafas de bebida. Alguém parecia ter tido muito trabalho ali, em colocar todos aqueles objetos organizados de forma tão assustadora, com intenções claramente místicas. Fiquei muito impressionado com aquela visão e diversas vezes relatei o que vi para amigos em conversas sobre coisas assustadoras. Nesse dia uma tia por quem nutro imenso carinho e admiração nos acompanhava na hora de ir embora. Talvez tenha nos encontrado no cemitério e vindo embora junto, já que morávamos na mesma cidade. Lembro dela nos dizendo para não tocar em nada e não ficar olhando, chamou aquela instalação de trabalho, “isso é um trabalho” disse. “Não mexam”. A prudência dela fez com que nos desse aquele aviso mas, a bem da verdade, eu estava tão impressionado e assustado que jamais chegaria perto de qualquer um daqueles objetos.

O cemitério era um local misterioso demais para mim. Um lugar inspirador de grande reflexão e cuidado. Das lembranças que mantenho da infância, essas são sem sombra de dúvida algumas das mais importantes. As idas ao cemitério eram um passeio não divertido na minha infância, uma obrigação. E sempre era um evento marcante. As imagens dos túmulos, as flores brancas e amarelas, o aglomerado de pessoas, as fotos nas lápides fazem hoje parte da minha paisagem interior. Compõe um importante aspecto da minha mitologia pessoal. Apesar de não frequentar muitos cemitérios na vida adulta, não mantenho viva essa tradição, a presença naquele local durante a primeira etapa da vida criou uma permanente sensação de seriedade e respeito pelos ritos fúnebres, pela morte e pela dor dos que ficam. Sentimentos profundamente enraizados no senso religioso e espiritual que norteia a minha visão de mundo.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

O Coringa e eu


No último final de semana assisti ao filme Coringa (2019), que conta com a brilhante atuação de Joaquin Phoenix no papel principal. Digo sem medo de cometer qualquer injustiça que foi o melhor filme que assisti esse ano e provavelmente um dos melhores que já vi em toda a vida. Entrou instantaneamente na lista dos meus filmes favoritos. Sei que esse não é um blog para falar sobre cinema, mas a experiência que tive com essa obra me obriga a tecer alguns comentários.

Tenho uma história relativamente íntima com o personagem Coringa. Me identifico com muito do que compõe o vilão, sobretudo com a forma caótica de lidar com os próprios desejos. Em diversas ocasiões utilizei imagens de palhaço para me referir a mim mesmo. Muito além do estereótipo de alguém que usa a personalidade animada e divertida para esconder sentimentos, como na famosa piada do Pagliacci que vemos em Watchmen (o filme de 2009), também fiz uso dessa alegorias para passar a mensagem aos stalkers de que sou capaz de fazer coisas impensáveis para pessoas comuns.

No filme de 2019, Arthur Fleck é um homem que sofre com doença mental e uma vida de dificuldades e injustiças. Sonha em trabalhar com arte mas nunca consegue sair da rotina fria de tormentos e obrigações que compõem seus dias. Devido a uma série de fatores combinados, vemos o personagem pouco a pouco perder a sanidade e manifestar uma atitude cada vez mais sarcástica e cruel, até ter sua personalidade tão modificada que é necessário um outro nome para identificá-lo. O Coringa, como alter ego, é construído gradativamente enquanto Arthur lida com as misérias que o assolam e o crescente ódio pela frustração constante que é a sua vida. O vilão nasce quando Arthur se deixa levar pela onda e permite que o palhaço assuma o controle da situação, como resultado de muita pressão psicológica sobre uma mente que já não era normal.

Respeitadas as devidas proporções, eu também já permiti que o palhaço louco dentro de mim assumisse o controle das minhas decisões. Passei alguns anos agindo com tanta audácia e ousadia que as pessoas com quem convivia ficavam chocadas. Tanto quem se importava comigo, que se preocupava com o ritmo alucinante das minhas escolhas, quanto gente com quem eu me relacionava profissionalmente por obrigação, que testemunhou atitudes que mesmo com o passar dos anos ainda não fazem sentido. Houve fases em que simplesmente absorvia os acontecimentos ruins com um sentimento de que um dia a situação viraria e eu estaria em outra posição, e ria por antecipação do que faria quando isso acontecesse. Fases onde tinha uma atuação socialmente aceitável no mundo visível, e outra atitude totalmente diferente na vida pessoal, alimentando hábitos e relações que seriam consideradas absurdas e incompatíveis com a superfície. E, por fim, uma fase onde o palhaço assumiu todo o controle e eu agi de forma caótica e não planejada, somente querendo ver o circo pegar fogo. Fase essa que me levou até o extremo de surtar e perder totalmente o contato com a realidade.

O Coringa é muito importante pra mim porque ilustra uma parte do que eu sou. Sou uma manifestação, hoje contida, deste espírito do caos que se diverte deslizando pelos acontecimentos, subvertendo a ordem por onde passa e influenciando tudo ao redor para o colapso. Quando busco nomear as personas que compõe a minha personalidade, a mais poderosa, e perigosa, de todas é o Palhaço. Com ele não há limites, nem critérios, nem qualquer tipo de freio. É a forma mais livre de mim mesmo que posso manifestar.

Não cheguei ao ponto de partir para ações violentas, como o Coringa comumente faz, mas cheguei bem perto. O vento que permitia me levar rumava irreversivelmente para esse lado. O que estancou os acontecimentos foi o surto, no qual quebrei e precisei me reconstruir. Hoje, o Palhaço, embora ainda viva em meu interior, não tem tanta influência nas minhas decisões e atitudes. Lidar com o ímpeto dele é uma tarefa particularmente difícil mas, tenho conseguido com um relativo sucesso. Tudo está em ordem e espero que continue assim. Não nutro grandes arrependimentos ou qualquer tipo de temor pela persona do Palhaço, mas já é um ponto pacífico que o melhor para mim é silenciar os impulsos que vem dali e buscar estabelecer alguma ordem, já que quero satisfazer mais meus desejos de ter.

O filme me impactou com muita força, pude ver o caminho que estava fazendo tempos atrás, rumo à total insanidade violenta. Claro que eu parei antes do que representa o início para o Coringa do filme, mas a identificação com o trajeto que o personagem faz foi inevitável. A loucura é uma porta larga, para passar por ela basta não se esforçar, é só se deixar levar. Fazer o que for surgindo sem calcular nada, sem tentar controlar nada. O mundo em si é enlouquecedor o suficiente para provocar a quebra de qualquer um que ultrapasse os limites.

A vida que levo hoje, regrada, organizada, contida, é muito mais segura e parece ter um destino muito melhor no longo prazo do que a que levava antes. A presença do Coringa continua forte em mim, mas não deixo que ele fique no comando. Nos entendemos bem em nossos diálogos internos. Ele mora do outro lado da rua, no lado oposto onde moram a depressão e a ansiedade. Todas as personas e doenças são vizinhas num mesmo bairro dentro da minha mente e me esforço para ter uma relação o mais saudável possível com todos os habitantes. A origem do Coringa como sendo um desgraçado com problemas mentais frustrado por não suportar a própria vida e não conseguir viver do que gostaria de fazer, combina muito comigo. A forma como ele raciocina e as coisas que é capaz de fazer, também combinam. Mas não sou ele. Hoje sei disso. E sobretudo sei que é necessário manter uma distância segura de tudo que ele toca.

No filme, Arthur sucumbe ao seu próprio palhaço e se torna um dos vilões mais terríveis que já foram imaginados. Vira o próprio caos a serviço do mal. Talvez a história fosse diferente se ele tivesse ajuda de pessoas que se importassem, se tivesse um tratamento adequado e se sua raiva e potenciais fossem direcionados para algo útil. A história da origem do Coringa fala sobre desamparo, sobre solidão, sobre perder a fé. E a minha história não é assim. Somos muito diferentes, apesar de termos compartilhado momentos importantes. Aceitar ajuda e reconhecer a importância das pessoas com quem me importo fizeram toda a diferença na escalada da minha evolução. Foi graças aos cuidados com que fui agraciado que o meu destino mudou e hoje não corro mais o risco de terminar como o Coringa terminaria aqui no mundo real. Sim, porque aqui é diferente da fantasia onde o personagem vive. Aqui as consequências são outras e o tempo é outro. Uma pessoa real que tente ser o que o Coringa é não terá um bom fim, não conquistará grandes coisas e nem superará desafios. O mundo real é muito pior do que o da fantasia e engole facilmente quem não joga o jogo nas regras.

Uma experiência intensa e perturbadora, assim resumo o que senti assistindo ao filme. Senti medo do personagem, coisa rara de me acontecer. Senti que não queria conhecer ninguém como aquele homem miserável e cruel que via na tela. Por mais que tenha sentido uma certa piedade do sofrimento retratado, nada justifica a maldade desproporcional nas atitudes dele. Me assustou o realismo conseguido pelo ator na interpretação e a figura toda, tudo que foi mostrado. Me assustou por ver uma parte escura de mim mesmo ali retratada. Saí do cinema com a cabeça fervendo e, mesmo hoje, passados alguns dias, ainda sinto a perturbação latejando nos corredores da minha mente.

Se existe uma mensagem possível nessa experiência, é a de que a arte pode mexer com as pessoas e é preciso saber colocar cada coisa no seu devido lugar. Por mais que um personagem ou uma história possam ilustrar algo com fidelidade, é preciso separar o que é real do imaginário. Sempre querendo o melhor para si, nunca se deixando levar para lugares desagradáveis ou perigosos. Fazer o certo é uma escolha, e geralmente não é a escolha mais fácil, mas é a única que comprovadamente vale a pena.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

De pé


Depois de conseguir me acalmar e voltar a ver alguma coisa boa no mundo ao meu redor, comecei a questionar o quanto do que senti de ruim nos últimos dias era real. Há uma semana atrás para onde eu olhasse só enxergava motivos para ficar triste ou irritado. Tudo parecia envolto numa grande nuvem de fumaça escura, sem brilho, sem nada de positivo. E tudo ficava ainda pior por conta das falhas que cometi com meus compromissos, deixando de fazer coisas que deveria fazer e me sentindo muito culpado por isso. Com um desespero crescente e a sensação de que tudo que construí desabaria sobre mim, por conta dos erros.

Mas o tempo passou e a química no meu corpo se alterou de uma forma que aos poucos minha percepção passou a ser mais neutra e menos dramática, avaliando o cenário de forma mais ampla e levando em consideração muitos acertos entre minhas atitudes, acertos que estavam sendo ignorados pela onda de tristeza e estresse. Precisei de momentos sozinho, de terapia e uma boa quantidade de sono para modificar as coisas internamente. Adiei alguns compromissos da faculdade e aproveitei o tempo para ficar comigo mesmo e derrotar um a um os pensamentos ruins que pipocavam na minha cabeça. Não fui ao médico, como tinha aconselhado minha terapeuta. Sei que ela tem razão em querer averiguar a medicação que tomo, mas ainda me sinto confortável com o que estou tomando. Foi uma dura e longa batalha encontrar os medicamentos certos, a dose certa e o horário certo. E agora que encontrei fica difícil decidir voltar à velha busca pelo apoio químico adequado. Mas sei que é questão de tempo até meu corpo se acostumar e as substâncias não fazerem mais o mesmo efeito. Planejo resolver isso com o psiquiatra em breve, mas agora não. No momento decidi seguir com as mesmas bengalas e lutar contra os sintomas da depressão com minhas próprias táticas. Dormindo sempre que possível, tomando longos banhos quentes, lendo coisas que me façam ter bons pensamentos e meditando sempre que lembro. Depois de uns dias bem pesados em que achei que tudo estava vindo abaixo eu consegui voltar a ver luz no mundo ao meu redor. Estou bem melhor do que estava. Já voltei às atividades normais, voltei a produzir o que preciso para meu trabalho e para a faculdade. A sensação de satisfação por cumprir compromissos é muito calmante, me faz desviar os pensamentos de que sou um inútil que só faz burrada. Melhora até mesmo minha auto-estima. O jogo segue e eu continuo jogando.

Estou melhor essa semana, quase ao ponto de querer fazer planos para as férias de janeiro. Nunca planejei férias, sempre improvisei. Saía para ficar uns dias sem ir ao trabalho sem saber o que faria, nem para onde iria, nem quem visitaria. Com o passar dos dias as ideias iam surgindo e eu buscava realizar um ou outro desejo. Penso que talvez devesse tentar algo diferente esse ano, ou ano que vem. Planejar antecipadamente uma viagem ou algo do tipo me daria folga para elaborar um roteiro mais complexo, com atividades mais intensas do que simples visitas rápidas a alguns amigos mais próximos. Não sei ao certo se vou fazer isso ou não, mas foi algo que me ocorreu. As metas que tinha para este ano não tem mais como ser totalmente cumpridas. Negligenciei alguns aspectos da vida e não foi possível fazer tudo o que gostaria de ter feito. De repente começar o ano que vem fazendo algo diferente seja útil para motivar o cumprimento de metas futuras. Vai saber...

Viver com depressão é como andar longas distâncias em terreno irregular. Algumas vezes haverá motivação suficiente para seguir em frente a passo largo com bom humor e desejo firme de concluir o trajeto. Outras o caminho ficará íngreme e exigirá um esforço maior para continuar andando. Pensamentos de desistência e questionamentos de porque continuar podem surgir a qualquer momento e será preciso lidar com eles. Muitas vezes o caminho deixará de fazer sentido, as forças sumirão e será preciso parar para descansar. E nesses momentos será preciso muita força de vontade para voltar a andar e resistir a tentação de ficar onde está para sempre. Eu encaro minha relação com a doença como uma grande e infinita jornada na qual eu decidi nunca parar de andar. Não foi sempre assim, já me deixei guiar pela depressão e fui parar em lugares muito ruins, já me abati e fiquei estagnado, preso no lodo, por longos períodos. Hoje, depois de tudo que me aconteceu, optei por as vezes diminuir o ritmo dos passos, andar mais devagar, mas nunca parar de andar. Na semana passada estive à beira de uma crise que teria me derrubado se não fosse quem sou hoje. Desta vez, ao invés de me abater e deixar tudo afundar, eu segui preso aos compromissos, fazendo o que devia fazer mesmo que mecanicamente. Adiei algumas coisas, sofri por ver o tempo desperdiçado, mas foi útil. A redução no ritmo possibilitou q ue continuasse andando, fazendo as coisas que devo fazer. E quando vi, a percepção começou a mudar e pouco a pouco os sintomas foram aliviando, até ficar quase normal. Que é como estou hoje. Já acelerei os passos novamente, embora siga num ritmo mais lento que o comum, e me sinto melhor a cada tarefa que concluo. Até já pensando em como serão as férias de janeiro.

Não sei o quanto do senti semana passada era real, tinha fundamento mesmo, e o quanto era coisa da minha cabeça. Na hora que sinto, tudo é muito real, tangível, incontestável. Agora, já relativamente recuperado do tombo, questiono se era tudo verdade. Talvez o problema esteja dentro da minha cabeça, e não no mundo externo. Talvez. É bem provável. E é muito cansativo lutar contra esses inimigos imaginários. Muito cansativo. Mas o que importa no momento é que passou, e estou melhor. Já consigo raciocinar direito, diferenciar o que é real do que não é, e estou disposto a seguir na batalha. Sem parar de andar, sem me deixar abater, sem desistir. E que venham logo as férias, porque estou precisando...

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Batalha


Essa semana tem sido bem complicada. Percebi no último sábado que um desânimo muito grande vinha crescendo em meu interior. Uma vontade de não ter vontades, associada a uma tristeza enorme. Acabei deixando para depois o que tinha planejado fazer naquele dia e repeti a decisão no domingo, passando o final de semana todo deitado sem fazer nada. Geralmente existe um limite para se ficar deitado e não fazer nada, chega uma hora que a pessoa já não aguenta mais ficar na cama e simplesmente precisa se levantar e fazer algo. Mas esse limite não existe quando estou assim. Fico apenas deitado sem reação nenhuma enquanto as horas passam. O desânimo aumenta ao ponto de não conseguir sair da cama nem para saciar a fome. É como se toda a vontade que existe em mim deixasse o meu corpo e sobrasse só uma carcaça inútil cheia de pensamentos doentios. Sim, porque apesar de estar incapacitado por fora, a mente funciona a pleno vapor, em um turbilhão de pensamentos de culpa e cobranças. Eu consigo perceber o mal que ficar parado está me fazendo, cobro atitudes de mim mesmo, me xingo, fico triste e desesperado com o que será de mim dali para frente. Mas meu corpo não reage, simplesmente não consigo reunir forças para levantar e fazer o que é preciso.

A situação piorou bastante no domingo, quando comecei a ter acessos de choro. Estava cansado de ficar ali naquela condição mas não sabia o que fazer. Os pensamentos passaram a ser bem catastróficos e até mesmo as coisas que estavam em bom funcionamento passaram a ser um problema. Me perdia na ideia de que as coisas que tinha feito durante a semana dariam errado no dia seguinte e eu teria que enfrentar uma vergonha imensa por ter falhado. Olhava para meu corpo, deitado sobre a roupa de cama suada, e pensava o quanto imprestável, burro e fraco eu era. Havia perdido totalmente o controle dos pensamentos e estava preso em um círculo autodepreciativo. Dormi e acordei várias vezes durante o dia, não fiz nada do que tinha planejado fazer.

Na segunda feira acordei em cima da hora para ir trabalhar, olhei para o relógio e senti a onda de pensamentos vir com uma violência gigantesca. Esmagando minha percepção. Sentia dor nos músculos faciais que são usados para chorar, e uma contratura dolorosa na garganta, característica de choro engasgado. Precisava ir ao banheiro mas não conseguia mobilizar forças para isso. Estava debilitado, enfraquecido, não conseguia sair da cama nem tomar nenhuma atitude. Com esforço, peguei o celular e enviei uma mensagem ao trabalho, dizendo que estava doente e que chegaria mais tarde. Mas acabei ficando imóvel e sentindo aquela angústia até muito tarde naquele dia. Perdendo o dia de trabalho. Não é a primeira vez que isso acontece, embora fizesse bastante tempo desde o último episódio. Passei o dia deitado sendo carregado por uma enxurrada de pensamentos odiosos, no qual já contava como certa a demissão e perda de tudo que conquistei profissionalmente ao longo de anos. Minha cabeça doía e sentia um misto de medo, raiva e tristeza. Estava desesperado. A doença havia voltado e eu perderia tudo, deixaria todos desapontados, decepcionaria as pessoas que confiam em mim. A vida novamente seria destruída e eu ficaria a mercê da ajuda de bons corações.

Então no fim da tarde a coisa toda deu uma reduzida na pressão. Inexplicavelmente comecei a me acalmar e consegui levantar. Fui até o banheiro, finalmente, e tomei um bom banho depois de dois dias deitado. Higiene pessoal sempre traz um bem estar importante, e com o banho consegui me animar e fazer uma refeição. Resolvi que iria para aula, apesar de tudo que tinha acontecido, e que daria o meu melhor para aprender algo naquele dia. E foi o que eu fiz. Não posso dizer que rendeu muito, mas foi bom sair de casa.

O mal estar ainda persiste enquanto escrevo esse texto, mas tenho conseguido cumprir com meus compromissos. Não faltei mais nada, nem cheguei atrasado. Não deixei de fazer nada que era obrigado a fazer. Apesar de estar sentindo um vazio enorme no peito e uma vontade constante de deitar e dormir em qualquer lugar que esteja. Tenho falado pouco, só o necessário, e me isolado o máximo possível do contato com outras pessoas. O silêncio parece ser um grande aliado. Minha psicóloga recomendou que procurasse o psiquiatra para revisar os medicamentos, talvez esteja na hora de trocar a medicação de novo. Ainda sinto o rosto doendo, ainda estou segurando o choro. Acho que deveria procurar o médico mesmo, talvez esteja na hora de testar um novo tratamento. Mas ainda não me animei a fazer isso. A medicação que estou tomando agora tem sido suficiente por tanto tempo, já me acostumei com ela. Uma parte de mim não quer mudar. Mas penso que minha psicóloga esteja certa em querer mexer nisso para ver se melhoro.

Vou levar as coisas da melhor forma possível e esperar que fique tudo bem. Sinto que nesse momento o principal é não permitir que a doença me ponha na cama tempo suficiente para me fazer perder coisas que construí com tanto sacrifício. Fazer o certo, nesse momento, me parece ser resistir e fazer o máximo que puder para não cair. Estou novamente em guerra contra um inimigo interno. E mesmo sem fazer ideia de como ele ressurgiu, preciso me concentrar em ficar de pé e cumprir com minhas obrigações. Espero que esse fantasma suma logo e tudo volte ao normal o quanto antes.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Boas escolhas


Entender que tenho um problema e que é minha responsabilidade lidar com isso foi um passo importante na minha vida. A primeira vez que percebi algo errado foi ainda na adolescência, quando por volta dos 14 anos passei a sentir uma angústia inexplicável e persistente sem razão aparente. Nessa época cheguei a procurar o posto de saúde da cidade onde morava para conversar com uma psiquiatra. Infelizmente na ocasião a médica disse que meu caso não tinha a gravidade necessária para ser tratado com ela naquele local e me recomendou buscar ajuda de profissionais particulares. Como não dispunha de condições e nem opções, já que não haviam profissionais atendendo na minha pequena cidade, deixei quieto e passei a lidar sozinho com o problema. Dali em diante tive uma vida conturbada, fiz inúmeras escolhas ruins e coloquei minha vida em risco diversas vezes. Sempre acompanhado de um sentimento que oscilava entre a euforia desproporcional e a tristeza profunda e inexplicável. Segui minha vida com um comportamento irresponsável e perigoso, lidando de forma caótica com o que sentia e deixando os pensamentos mais idiotas crescerem e se multiplicarem na minha cabeça. Foram anos de decisões estúpidas e interpretações erradas do que estava vivendo. A autodestruição era praticamente a minha principal filosofia de vida.

Depois de alguns episódios que já narrei aqui, entre os quais passei por duas tentativas diretas de suicídio, sendo a segunda durante um surto esquizofrênico, percebi tardiamente que o problema que carregava na minha alma era sério demais para lidar sozinho e a forma como vinha lidando com o problema até aquele momento só vinha trazendo desgraça e tristeza para mim e para as pessoas que se importavam comigo. Foi quando entendi a gravidade da situação e decidi mudar de estratégia. No primeiro momento, ainda internado em uma clínica, passei a simplesmente aceitar a ajuda que me era oferecida pelas pessoas que estavam sofrendo junto comigo por tudo aquilo. Resolvi abrir mão de tomar todas as decisões sozinho e dar o braço a torcer, fazendo o que me pediam e esperavam de mim sem questionar os métodos ou tentar adivinhar os resultados. Fiquei nessa condição passiva por um tempo no qual foi bastante complicado lidar com as emoções e distúrbios que causei a mim mesmo por irresponsabilidade e burrice. Foi uma época em que reconheci que era fraco demais para enfrentar o problema e passei a fazer tudo que as pessoas em quem confiava, e confio até hoje, diziam para fazer. Foi como começar a vida de novo, como passar novamente por um período de infância no qual eu não decidia o que fazer sozinho. Era como ser novamente tutelado por um responsável, ou, no caso, por alguns responsáveis.

Para minha surpresa, em alguns meses o comportamento que havia adotado em face da situação passou a trazer alguns resultados muito positivos. Graças a ajuda dos parentes, amigos de fé e dos profissionais que estavam me tratando eu comecei a reagir diferentemente e, aos poucos, o meu entendimento da situação foi se tornando cada vez mais claro. Foi uma fase muito importante na qual passei a sentir aumentar gradativamente a lucidez na minha mente, de uma forma que não sentia desde o final da infância. Lentamente meus olhos foram se abrindo e pude ver coisas que nem lembrava mais, me encontrar de novo, reconhecer o que era realmente parte de mim e o que era causado pela doença. Renasci.

O quadro em que eu me encontrava inicialmente era grave mas, graças ao trabalho de várias pessoas que me ajudaram, fui gradativamente me recuperando e enxergando melhor tanto a mim mesmo quanto o mundo a minha volta. Quando então comecei a perceber que era hora de novamente assumir o controle das minhas decisões.

Já bem melhor, mais lúcido, sóbrio e com a mente acalmada, passei a fazer pequenas escolhas para mim mesmo. No início decidindo sobre coisas pequenas como o uso de redes sociais e o tipo de conteúdo que consumiria na internet de forma geral. Fiz uma grande higiene mental, eliminei tudo que julguei, com os novos olhos, ser prejudicial. Alimentei o que julgava ser benéfico e deixei de lado o que parecia fazer mal. Abri mão da necessidade de solidão e sentimentos arrogantes de auto suficiência em troca de apreciar a companhia de pessoas importantes para mim. Enfrentei vícios e maus hábitos, busquei evoluir no meu mundo particular. Sempre amparado pelo apoio amoroso das pessoas e pelo tratamento, que seguia a risca. Depois de um tempo passei a me sentir mais seguro e comecei a fazer escolhas maiores, iniciei uma nova caminhada profissional de longo prazo, passei a buscar conhecimento como um estilo novo de vida, reformulei meu círculo de relações pessoais e até mesmo mudei minha visão religiosa do mundo. Foi uma transformação completa.

Hoje vivo uma vida agitada, cheia de compromissos e responsabilidades. Saí da atitude totalmente passiva do início do tratamento para ser protagonista de todas as decisões. E enfrento hoje as dificuldades de uma vida normal de quem busca evoluir. Estou em um momento de transição, consciente de estar criando um futuro diferente e melhor para mim e para as pessoas que amo. Buscando da forma certa alcançar objetivos positivos e viver bem na maior parte do tempo. Depois de tantas escolhas desastrosas, me concentro em fazer boas escolhas, em tentar acertar o passo e andar na linha. Cuidar de mim mesmo e de todos a minha volta. Experimento um novo jeito de viver. Uma vida com significado, com motivo de ser. Sem nunca abrir mão da vigilância, sempre mantendo os cuidados do tratamento e não abrindo exceções para comportamentos negativos. Longe de ser um paraíso, passo sim por muitas dificuldades e enfrento diariamente uma luta contra mim mesmo para não ceder ao desânimo e não deixar pensamentos destrutivos proliferarem na minha mente. Mas neste momento sinto que estou indo para um bom rumo, fazendo o que deveria ter feito desde o início da vida. Finalmente aceitando as dores e confortos de ser uma pessoa adulta e responsável por tudo que me acontece.

Tudo de bom que tenho na vida hoje, toda a mudança para melhor que pude experimentar teve início naquele momento dramático da vida em que estava em pedaços, destruído. Foi só quando reconheci que tinha um problema e que esse problema era grande demais para lidar sozinho, que as coisas começaram a mudar. Precisei aceitar ajuda, aprender de novo como viver e como ver a vida. Aceitar que não era tão bom nem tão forte quanto julgava ser e ceder ao aprendizado. Foi preciso aprender humildade antes de sair andando por onde eu queria. E tudo começou com o reconhecimento do problema e a decisão de fazer a coisa certa. Hoje estou muito melhor do que estava e quero seguir melhorando. Meus olhos miram uma vida que é digna de ser vivida. E tudo começou pela atitude daquele dia fatídico em que estava de mal a pior sem saber o que seria de mim. Fiz uma escolha baseada no amor que sinto pelas pessoas que me importo e essa foi uma das melhores escolhas que fiz na vida. É bom tomar cuidado com as escolhas, saber diferenciar o que faz bem do que faz mal. Custei a entender isso, foi preciso um grande trabalho de mudança. Mas hoje é a realidade e é o jeito como eu aconselho a todos para seguirem. Vale a pena lutar para ver a as coisas como realmente são e fazer boas escolhas, vale a pena aceitar ajuda e vale a pena abrir mão do que faz mal.