A
morte é, desde sempre, o mais intrigante de todos os mistérios. Por
que nós, seres humanos, dotados de autoconsciência e com potencial
criativo tão ilimitado, somos condenados a morrer? O que falta para
nos desgarrarmos dessa equidade biológica? O que acontece com as
consciências abstratas das pessoas que morrem? Aliás, falando em
consciência, é uma verdade bastante inconveniente a de que a
ciência humana mais avançada de todos os tempos ainda não tenha
nos explicado o que é e, sequer, onde exatamente ocorre o fenômeno
da consciência. E muito menos o que acontece com ela quando o corpo
perde a vida. Mesmo com todo o conhecimento acumulado que temos, com
todos os métodos de pesquisa e recursos tecnológicos, esse mistério
primordial ainda persiste e intriga. Pra mim, a morte inspira
respeito e autoridade. Sinto-a como um mistério intocável, uma
sombra que se estica por todo o universo. Algo para se falar baixo e
com calma quando se aborda, sem tentar fazer graça ou ressignificar.
Algo constante e comum a tudo e a todos, mas que deve ser tratado
como extraordinário e único. Há algo sagrado na morte, mesmo
quando tratamos puramente da morte biológica. Com a proximidade do
dia 2 de novembro, o dia reservado à lembrança dos finados, algumas
memórias surgem.
Acredito
que a visão que tenho sobre esse tema surgiu na infância. Minha
família tinha o hábito de ir ao cemitério em datas especiais.
Lembro de diversos momentos em que andei sozinho e explorei os
corredores entre os túmulos no cemitério São Miguel e Almas, em
Porto Alegre. Um lugar imenso, terreno fértil para a grande
curiosidade com que nasci. Lembro de andar por muito tempo dentro do
cemitério, explorar o local como se quisesse conhecer toda sua
extensão. Provavelmente nunca cheguei nem perto disso mas, na minha
visão de criança, eu sentia que podia conhecer tudo. Olhava os
túmulos, mirava as fotografias, nomes e datas. Ficava impressionado
com as estátuas de bronze, de concreto, de mármore, muitas imagens
de anjos e da Virgem Maria. Bustos, cruzes, imagens de corpo inteiro
de pessoas em tamanho real. Imagens muito marcantes para uma mente
tão jovem. Quem nos levava ao cemitério era minha mãe. Anualmente
íamos prestar respeito aos entes queridos falecidos, que, no caso da
minha mãe, contava com a memória de um irmão e de um filho. Num
dos recordos mais presentes que tenho, eu devia ter por volta de dez
anos de idade. Lembro de irmos de ônibus até Porto Alegre e
descermos numa rua asfaltada, em um dia ensolarado e quente.
Passarmos andando entre muitos vendedores de flores nas calçadas
abarrotadas de pessoas e subirmos um morro até a entrada do
cemitério. Um enorme portão de ferro por onde um grande fluxo de
pessoas lentamente adentrava o local. Eu andava rápido, cuidando
para não perder de vista minha mãe, que estava de mãos dadas com
meu irmão mais novo. Logo na entrada passamos por uma imagem imensa,
com alguns metros de altura e de extensão, feita de bronze. Uma
estátua da Virgem com dezenas de anjos com aparência infantil
segurando-se no tecido do seu longo vestido. Lembro de ficar meio
hipnotizado pelo esplendor da estátua, que era banhada pela
abundante luz do sol. Magnífica e um tanto intimidadora. Avançamos,
passando por diversas outras estátuas que decoravam túmulos
luxuosos, construções com mármore e granito, mausoléus de
famílias que pareciam pequenas casas, onde eu achava estranho ver
“uma casinha para quem está morto”. Seguíamos pelo caminho até
chegar numa escadaria que nos levava ao prédio onde ficam as gavetas
com sepulcros organizados em paredes, como um grande condomínio
mortuário. Era ali que minha família possuía um jazigo. Então
andávamos pelos corredores do gigantesco prédio, subíamos e
descíamos escadas por longos minutos. O chão era de lajotas e,
conforme chegávamos mais próximo do nosso destino, o movimento de
pessoas ao nosso redor era cada vez menor. Cada grupo de pessoas ia
achando os seus entes queridos sepultados e ficando para trás,
enquanto nós continuávamos seguindo até chegar na gaveta da nossa
família. Quando chegávamos na parede certa, rapidamente
procurávamos nossos parentes pelo nome inscrito em relevo na pedra
que servia de porta. Então minha mãe limpava a frente do túmulo e
colocava flores. Meu irmão e eu olhávamos atentamente enquanto ela
trabalhava. Depois de arrumar, ela olhava para a imagem formada com
os nomes dos nossos parentes falecidos queridos e ficava brevemente
contemplando em silêncio. Nesses momentos eu costumava me afastar
dela e sair andando sozinho pelos corredores. Olhando por sobre as
muretas que delimitavam os andares. No final de um dos corredores
ficava a parede de trás do prédio das gavetas, devíamos estar no
quarto ou quinto andar, de onde se podia ver por sobre um muro, cerca
de vinte metros abaixo, um enorme terreno com centenas de cruzes
brancas fincadas no topo de morros de terra. Certa vez minha mãe me
disse que ali eram enterrados os indigentes, moradores de rua,
pessoas sem família que eram sepultados em covas estreitas e
alinhadas. Lembro de que em uma daquelas covas, numa das vezes em que
fui lá olhar de cima do prédio, havia uma coroa de flores jogada no
chão, sobre uma das cruzes que despontava no meio do círculo
floral. Aquilo despertou minha curiosidade, me perguntei como a
pessoa que colocou aquele arranjo sabia que o corpo do seu ente
querido estava realmente ali, sendo que todos os túmulos eram iguais
e aparentemente não havia identificação. Pelo menos não como nos
sepulcros do prédio onde eu estava ou no resto do cemitério por
onde andei.
Eu
gostava de andar pelos corredores, galerias, observar as fotos e ler
os epitáfios, calcular a idade das pessoas subtraindo a data da
morte da data de nascimento. Jovens, idosos, homens, mulheres… Todo
tipo de gente que, geralmente, eu estava acostumado a ver viva,
naquelas imagens estava morta. O que me dava uma sensação estranha.
Uma vez, em um dos passeios, eu encontrei numa das paredes o túmulo
de uma criança. Era possível saber que era criança pelas datas
estampadas e pela foto em preto em branco que decorava a pedra. O que
chamava mais a atenção era que o rosto da criança era deformado. A
boca e o nariz eram unidos em uma cavidade só, no meio da face.
Fiquei bastante perturbado com aquela imagem, pensando no quanto deve
ter sido difícil ser aquela criança, e no quanto a família deve
ter sofrido. Foi uma das primeiras vezes que vi a imagem de uma
pessoa deformada.
O
prédio das gavetas era aberto no centro, como um imenso poço de luz
que abrigava um jardim no andar térreo. Do alto dos andares
superiores podia-se ver o movimento das pessoas ao redor do jardim.
Todos os corredores eram cheios de gente. Eu ficava olhando as
pessoas conversarem umas com as outras, limpando e decorando os
túmulos como minha mãe fazia, outras em silêncio ou chorando.
Ninguém estava ali por diversão ou para passar o tempo. Todos
passavam uma sensação de estar cumprindo um compromisso. A tristeza
solene no ar dava um ar de profundo respeito a tudo e a todos. Não
havia nada engraçado e nem leve, era tudo cinza. Tudo denso. As
pessoas falavam baixo, o cheiro de flores e velas queimadas era
enjoativo, mas ninguém se importava. Nem eu. Fui criado em uma
família católica onde me ensinaram a respeitar lugares e objetos
por serem sagrados. Quando eu ia a uma igreja tomava cuidado até com
a forma como eu olhava para os objetos, e principalmente com o que eu
falava. O respeito era demonstrado com zelo e seriedade. Essa
sensação que as igrejas e locais sacros me despertavam também era
presente no cemitério. Havia religiosidade e espiritualidade ali. As
pessoas estavam sofrendo e todos respeitavam o espaço de todos.
Depois
de passear eu voltava para onde minha mãe estava. Ás vezes ela
estava conversando com alguma estranha, encontrava alguém conhecido
ou uma das minhas tias que acabavam indo ao cemitério no mesmo dia.
Após prestar as homenagens ao nossos parentes, nós saíamos andando
pelo cemitério em direção à rua, para irmos embora. Não tenho
certeza se fazíamos o mesmo caminho para voltar ou se íamos por
outro lado. Mas lembro de ficar observando atentamente tudo
novamente. Admirado com as estátuas enquanto a quantidade de pessoas
ao nosso redor ia aumentando, até chegarmos novamente no grande
portão e sairmos.
Em
Porto Alegre existem vários cemitérios um ao lado do outro, alguns
de diferentes religiões. Numa das vezes em que nos dirigíamos ao
ponto de ônibus para ir embora, fizemos um outro caminho e passamos
pelo portão de um cemitério que ficava próximo ao que tínhamos
ido, no qual foram depositados no chão uma grande quantidade de
objetos de cunho ritualístico. Uma tábua com pregos cravados em
forma de pentagrama no qual haviam grudado um pedaço de carne que
parecia ser o fígado de um animal, um objeto grande feito de cera
com a forma de uma cabeça humana, cruzes, facas, velas, taças,
muita comida e garrafas de bebida. Alguém parecia ter tido muito
trabalho ali, em colocar todos aqueles objetos organizados de forma
tão assustadora, com intenções claramente místicas. Fiquei muito
impressionado com aquela visão e diversas vezes relatei o que vi
para amigos em conversas sobre coisas assustadoras. Nesse dia uma tia
por quem nutro imenso carinho e admiração nos acompanhava na hora
de ir embora. Talvez tenha nos encontrado no cemitério e vindo
embora junto, já que morávamos na mesma cidade. Lembro dela nos
dizendo para não tocar em nada e não ficar olhando, chamou aquela
instalação de trabalho, “isso é um trabalho” disse. “Não
mexam”. A prudência dela fez com que nos desse aquele aviso mas, a
bem da verdade, eu estava tão impressionado e assustado que jamais
chegaria perto de qualquer um daqueles objetos.
O
cemitério era um local misterioso demais para mim. Um lugar
inspirador de grande reflexão e cuidado. Das lembranças que
mantenho da infância, essas são sem sombra de dúvida algumas das
mais importantes. As idas ao cemitério eram um passeio não
divertido na minha infância, uma obrigação. E sempre era um evento
marcante. As imagens dos túmulos, as flores brancas e amarelas, o
aglomerado de pessoas, as fotos nas lápides fazem hoje parte da
minha paisagem interior. Compõe um importante aspecto da minha
mitologia pessoal. Apesar de não frequentar muitos cemitérios na
vida adulta, não mantenho viva essa tradição, a presença naquele
local durante a primeira etapa da vida criou uma permanente sensação
de seriedade e respeito pelos ritos fúnebres, pela morte e pela dor
dos que ficam. Sentimentos profundamente enraizados no senso
religioso e espiritual que norteia a minha visão de mundo.