No
último final de semana assisti ao filme Coringa (2019), que conta
com a brilhante atuação de Joaquin Phoenix no papel principal. Digo
sem medo de cometer qualquer injustiça que foi o melhor filme que
assisti esse ano e provavelmente um dos melhores que já vi em toda a
vida. Entrou instantaneamente na lista dos meus filmes favoritos. Sei
que esse não é um blog para falar sobre cinema, mas a experiência
que tive com essa obra me obriga a tecer alguns comentários.
Tenho
uma história relativamente íntima com o personagem Coringa. Me
identifico com muito do que compõe o vilão, sobretudo com a forma
caótica de lidar com os próprios desejos. Em diversas ocasiões
utilizei imagens de palhaço para me referir a mim mesmo. Muito além
do estereótipo de alguém que usa a personalidade animada e
divertida para esconder sentimentos, como na famosa piada do
Pagliacci que vemos em Watchmen (o filme de 2009), também fiz uso
dessa alegorias para passar a mensagem aos stalkers de que sou capaz
de fazer coisas impensáveis para pessoas comuns.
No
filme de 2019, Arthur Fleck é um homem que sofre com doença mental
e uma vida de dificuldades e injustiças. Sonha em trabalhar com arte
mas nunca consegue sair da rotina fria de tormentos e obrigações
que compõem seus dias. Devido a uma série de fatores combinados,
vemos o personagem pouco a pouco perder a sanidade e manifestar uma
atitude cada vez mais sarcástica e cruel, até ter sua personalidade
tão modificada que é necessário um outro nome para identificá-lo.
O Coringa, como alter ego, é construído gradativamente enquanto
Arthur lida com as misérias que o assolam e o crescente ódio pela
frustração constante que é a sua vida. O vilão nasce quando
Arthur se deixa levar pela onda e permite que o palhaço assuma o
controle da situação, como resultado de muita pressão psicológica
sobre uma mente que já não era normal.
Respeitadas
as devidas proporções, eu também já permiti que o palhaço louco
dentro de mim assumisse o controle das minhas decisões. Passei
alguns anos agindo com tanta audácia e ousadia que as pessoas com
quem convivia ficavam chocadas. Tanto quem se importava comigo, que
se preocupava com o ritmo alucinante das minhas escolhas, quanto
gente com quem eu me relacionava profissionalmente por obrigação,
que testemunhou atitudes que mesmo com o passar dos anos ainda não
fazem sentido. Houve fases em que simplesmente absorvia os
acontecimentos ruins com um sentimento de que um dia a situação
viraria e eu estaria em outra posição, e ria por antecipação do
que faria quando isso acontecesse. Fases onde tinha uma atuação
socialmente aceitável no mundo visível, e outra atitude totalmente
diferente na vida pessoal, alimentando hábitos e relações que
seriam consideradas absurdas e incompatíveis com a superfície. E,
por fim, uma fase onde o palhaço assumiu todo o controle e eu agi de
forma caótica e não planejada, somente querendo ver o circo pegar
fogo. Fase essa que me levou até o extremo de surtar e perder
totalmente o contato com a realidade.
O
Coringa é muito importante pra mim porque ilustra uma parte do que
eu sou. Sou uma manifestação, hoje contida, deste espírito do caos
que se diverte deslizando pelos acontecimentos, subvertendo a ordem
por onde passa e influenciando tudo ao redor para o colapso. Quando
busco nomear as personas que compõe a minha personalidade, a mais
poderosa, e perigosa, de todas é o Palhaço. Com ele não há
limites, nem critérios, nem qualquer tipo de freio. É a forma mais
livre de mim mesmo que posso manifestar.
Não
cheguei ao ponto de partir para ações violentas, como o Coringa
comumente faz, mas cheguei bem perto. O vento que permitia me levar
rumava irreversivelmente para esse lado. O que estancou os
acontecimentos foi o surto, no qual quebrei e precisei me
reconstruir. Hoje, o Palhaço, embora ainda viva em meu interior, não
tem tanta influência nas minhas decisões e atitudes. Lidar com o
ímpeto dele é uma tarefa particularmente difícil mas, tenho
conseguido com um relativo sucesso. Tudo está em ordem e espero que
continue assim. Não nutro grandes arrependimentos ou qualquer tipo
de temor pela persona do Palhaço, mas já é um ponto pacífico que
o melhor para mim é silenciar os impulsos que vem dali e buscar
estabelecer alguma ordem, já que quero satisfazer mais meus desejos
de ter.
O
filme me impactou com muita força, pude ver o caminho que estava
fazendo tempos atrás, rumo à total insanidade violenta. Claro que
eu parei antes do que representa o início para o Coringa do filme,
mas a identificação com o trajeto que o personagem faz foi
inevitável. A loucura é uma porta larga, para passar por ela basta
não se esforçar, é só se deixar levar. Fazer o que for surgindo
sem calcular nada, sem tentar controlar nada. O mundo em si é
enlouquecedor o suficiente para provocar a quebra de qualquer um que
ultrapasse os limites.
A
vida que levo hoje, regrada, organizada, contida, é muito mais
segura e parece ter um destino muito melhor no longo prazo do que a
que levava antes. A presença do Coringa continua forte em mim, mas
não deixo que ele fique no comando. Nos entendemos bem em nossos
diálogos internos. Ele mora do outro lado da rua, no lado oposto
onde moram a depressão e a ansiedade. Todas as personas e doenças
são vizinhas num mesmo bairro dentro da minha mente e me esforço
para ter uma relação o mais saudável possível com todos os
habitantes. A origem do Coringa como sendo um desgraçado com
problemas mentais frustrado por não suportar a própria vida e não
conseguir viver do que gostaria de fazer, combina muito comigo. A
forma como ele raciocina e as coisas que é capaz de fazer, também
combinam. Mas não sou ele. Hoje sei disso. E sobretudo sei que é
necessário manter uma distância segura de tudo que ele toca.
No
filme, Arthur sucumbe ao seu próprio palhaço e se torna um dos
vilões mais terríveis que já foram imaginados. Vira o próprio
caos a serviço do mal. Talvez a história fosse diferente se ele
tivesse ajuda de pessoas que se importassem, se tivesse um tratamento
adequado e se sua raiva e potenciais fossem direcionados para algo
útil. A história da origem do Coringa fala sobre desamparo, sobre
solidão, sobre perder a fé. E a minha história não é assim.
Somos muito diferentes, apesar de termos compartilhado momentos
importantes. Aceitar ajuda e reconhecer a importância das pessoas
com quem me importo fizeram toda a diferença na escalada da minha
evolução. Foi graças aos cuidados com que fui agraciado que o meu
destino mudou e hoje não corro mais o risco de terminar como o
Coringa terminaria aqui no mundo real. Sim, porque aqui é diferente
da fantasia onde o personagem vive. Aqui as consequências são
outras e o tempo é outro. Uma pessoa real que tente ser o que o
Coringa é não terá um bom fim, não conquistará grandes coisas e
nem superará desafios. O mundo real é muito pior do que o da
fantasia e engole facilmente quem não joga o jogo nas regras.
Uma
experiência intensa e perturbadora, assim resumo o que senti
assistindo ao filme. Senti medo do personagem, coisa rara de me
acontecer. Senti que não queria conhecer ninguém como aquele homem
miserável e cruel que via na tela. Por mais que tenha sentido uma
certa piedade do sofrimento retratado, nada justifica a maldade
desproporcional nas atitudes dele. Me assustou o realismo conseguido
pelo ator na interpretação e a figura toda, tudo que foi mostrado.
Me assustou por ver uma parte escura de mim mesmo ali retratada. Saí
do cinema com a cabeça fervendo e, mesmo hoje, passados alguns dias,
ainda sinto a perturbação latejando nos corredores da minha mente.
Se
existe uma mensagem possível nessa experiência, é a de que a arte
pode mexer com as pessoas e é preciso saber colocar cada coisa no
seu devido lugar. Por mais que um personagem ou uma história possam
ilustrar algo com fidelidade, é preciso separar o que é real do
imaginário. Sempre querendo o melhor para si, nunca se deixando
levar para lugares desagradáveis ou perigosos. Fazer o certo é uma
escolha, e geralmente não é a escolha mais fácil, mas é a única
que comprovadamente vale a pena.
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