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quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Passeio no cemitério

A morte é, desde sempre, o mais intrigante de todos os mistérios. Por que nós, seres humanos, dotados de autoconsciência e com potencial criativo tão ilimitado, somos condenados a morrer? O que falta para nos desgarrarmos dessa equidade biológica? O que acontece com as consciências abstratas das pessoas que morrem? Aliás, falando em consciência, é uma verdade bastante inconveniente a de que a ciência humana mais avançada de todos os tempos ainda não tenha nos explicado o que é e, sequer, onde exatamente ocorre o fenômeno da consciência. E muito menos o que acontece com ela quando o corpo perde a vida. Mesmo com todo o conhecimento acumulado que temos, com todos os métodos de pesquisa e recursos tecnológicos, esse mistério primordial ainda persiste e intriga. Pra mim, a morte inspira respeito e autoridade. Sinto-a como um mistério intocável, uma sombra que se estica por todo o universo. Algo para se falar baixo e com calma quando se aborda, sem tentar fazer graça ou ressignificar. Algo constante e comum a tudo e a todos, mas que deve ser tratado como extraordinário e único. Há algo sagrado na morte, mesmo quando tratamos puramente da morte biológica. Com a proximidade do dia 2 de novembro, o dia reservado à lembrança dos finados, algumas memórias surgem.

Acredito que a visão que tenho sobre esse tema surgiu na infância. Minha família tinha o hábito de ir ao cemitério em datas especiais. Lembro de diversos momentos em que andei sozinho e explorei os corredores entre os túmulos no cemitério São Miguel e Almas, em Porto Alegre. Um lugar imenso, terreno fértil para a grande curiosidade com que nasci. Lembro de andar por muito tempo dentro do cemitério, explorar o local como se quisesse conhecer toda sua extensão. Provavelmente nunca cheguei nem perto disso mas, na minha visão de criança, eu sentia que podia conhecer tudo. Olhava os túmulos, mirava as fotografias, nomes e datas. Ficava impressionado com as estátuas de bronze, de concreto, de mármore, muitas imagens de anjos e da Virgem Maria. Bustos, cruzes, imagens de corpo inteiro de pessoas em tamanho real. Imagens muito marcantes para uma mente tão jovem. Quem nos levava ao cemitério era minha mãe. Anualmente íamos prestar respeito aos entes queridos falecidos, que, no caso da minha mãe, contava com a memória de um irmão e de um filho. Num dos recordos mais presentes que tenho, eu devia ter por volta de dez anos de idade. Lembro de irmos de ônibus até Porto Alegre e descermos numa rua asfaltada, em um dia ensolarado e quente. Passarmos andando entre muitos vendedores de flores nas calçadas abarrotadas de pessoas e subirmos um morro até a entrada do cemitério. Um enorme portão de ferro por onde um grande fluxo de pessoas lentamente adentrava o local. Eu andava rápido, cuidando para não perder de vista minha mãe, que estava de mãos dadas com meu irmão mais novo. Logo na entrada passamos por uma imagem imensa, com alguns metros de altura e de extensão, feita de bronze. Uma estátua da Virgem com dezenas de anjos com aparência infantil segurando-se no tecido do seu longo vestido. Lembro de ficar meio hipnotizado pelo esplendor da estátua, que era banhada pela abundante luz do sol. Magnífica e um tanto intimidadora. Avançamos, passando por diversas outras estátuas que decoravam túmulos luxuosos, construções com mármore e granito, mausoléus de famílias que pareciam pequenas casas, onde eu achava estranho ver “uma casinha para quem está morto”. Seguíamos pelo caminho até chegar numa escadaria que nos levava ao prédio onde ficam as gavetas com sepulcros organizados em paredes, como um grande condomínio mortuário. Era ali que minha família possuía um jazigo. Então andávamos pelos corredores do gigantesco prédio, subíamos e descíamos escadas por longos minutos. O chão era de lajotas e, conforme chegávamos mais próximo do nosso destino, o movimento de pessoas ao nosso redor era cada vez menor. Cada grupo de pessoas ia achando os seus entes queridos sepultados e ficando para trás, enquanto nós continuávamos seguindo até chegar na gaveta da nossa família. Quando chegávamos na parede certa, rapidamente procurávamos nossos parentes pelo nome inscrito em relevo na pedra que servia de porta. Então minha mãe limpava a frente do túmulo e colocava flores. Meu irmão e eu olhávamos atentamente enquanto ela trabalhava. Depois de arrumar, ela olhava para a imagem formada com os nomes dos nossos parentes falecidos queridos e ficava brevemente contemplando em silêncio. Nesses momentos eu costumava me afastar dela e sair andando sozinho pelos corredores. Olhando por sobre as muretas que delimitavam os andares. No final de um dos corredores ficava a parede de trás do prédio das gavetas, devíamos estar no quarto ou quinto andar, de onde se podia ver por sobre um muro, cerca de vinte metros abaixo, um enorme terreno com centenas de cruzes brancas fincadas no topo de morros de terra. Certa vez minha mãe me disse que ali eram enterrados os indigentes, moradores de rua, pessoas sem família que eram sepultados em covas estreitas e alinhadas. Lembro de que em uma daquelas covas, numa das vezes em que fui lá olhar de cima do prédio, havia uma coroa de flores jogada no chão, sobre uma das cruzes que despontava no meio do círculo floral. Aquilo despertou minha curiosidade, me perguntei como a pessoa que colocou aquele arranjo sabia que o corpo do seu ente querido estava realmente ali, sendo que todos os túmulos eram iguais e aparentemente não havia identificação. Pelo menos não como nos sepulcros do prédio onde eu estava ou no resto do cemitério por onde andei.

Eu gostava de andar pelos corredores, galerias, observar as fotos e ler os epitáfios, calcular a idade das pessoas subtraindo a data da morte da data de nascimento. Jovens, idosos, homens, mulheres… Todo tipo de gente que, geralmente, eu estava acostumado a ver viva, naquelas imagens estava morta. O que me dava uma sensação estranha. Uma vez, em um dos passeios, eu encontrei numa das paredes o túmulo de uma criança. Era possível saber que era criança pelas datas estampadas e pela foto em preto em branco que decorava a pedra. O que chamava mais a atenção era que o rosto da criança era deformado. A boca e o nariz eram unidos em uma cavidade só, no meio da face. Fiquei bastante perturbado com aquela imagem, pensando no quanto deve ter sido difícil ser aquela criança, e no quanto a família deve ter sofrido. Foi uma das primeiras vezes que vi a imagem de uma pessoa deformada.

O prédio das gavetas era aberto no centro, como um imenso poço de luz que abrigava um jardim no andar térreo. Do alto dos andares superiores podia-se ver o movimento das pessoas ao redor do jardim. Todos os corredores eram cheios de gente. Eu ficava olhando as pessoas conversarem umas com as outras, limpando e decorando os túmulos como minha mãe fazia, outras em silêncio ou chorando. Ninguém estava ali por diversão ou para passar o tempo. Todos passavam uma sensação de estar cumprindo um compromisso. A tristeza solene no ar dava um ar de profundo respeito a tudo e a todos. Não havia nada engraçado e nem leve, era tudo cinza. Tudo denso. As pessoas falavam baixo, o cheiro de flores e velas queimadas era enjoativo, mas ninguém se importava. Nem eu. Fui criado em uma família católica onde me ensinaram a respeitar lugares e objetos por serem sagrados. Quando eu ia a uma igreja tomava cuidado até com a forma como eu olhava para os objetos, e principalmente com o que eu falava. O respeito era demonstrado com zelo e seriedade. Essa sensação que as igrejas e locais sacros me despertavam também era presente no cemitério. Havia religiosidade e espiritualidade ali. As pessoas estavam sofrendo e todos respeitavam o espaço de todos.

Depois de passear eu voltava para onde minha mãe estava. Ás vezes ela estava conversando com alguma estranha, encontrava alguém conhecido ou uma das minhas tias que acabavam indo ao cemitério no mesmo dia. Após prestar as homenagens ao nossos parentes, nós saíamos andando pelo cemitério em direção à rua, para irmos embora. Não tenho certeza se fazíamos o mesmo caminho para voltar ou se íamos por outro lado. Mas lembro de ficar observando atentamente tudo novamente. Admirado com as estátuas enquanto a quantidade de pessoas ao nosso redor ia aumentando, até chegarmos novamente no grande portão e sairmos.

Em Porto Alegre existem vários cemitérios um ao lado do outro, alguns de diferentes religiões. Numa das vezes em que nos dirigíamos ao ponto de ônibus para ir embora, fizemos um outro caminho e passamos pelo portão de um cemitério que ficava próximo ao que tínhamos ido, no qual foram depositados no chão uma grande quantidade de objetos de cunho ritualístico. Uma tábua com pregos cravados em forma de pentagrama no qual haviam grudado um pedaço de carne que parecia ser o fígado de um animal, um objeto grande feito de cera com a forma de uma cabeça humana, cruzes, facas, velas, taças, muita comida e garrafas de bebida. Alguém parecia ter tido muito trabalho ali, em colocar todos aqueles objetos organizados de forma tão assustadora, com intenções claramente místicas. Fiquei muito impressionado com aquela visão e diversas vezes relatei o que vi para amigos em conversas sobre coisas assustadoras. Nesse dia uma tia por quem nutro imenso carinho e admiração nos acompanhava na hora de ir embora. Talvez tenha nos encontrado no cemitério e vindo embora junto, já que morávamos na mesma cidade. Lembro dela nos dizendo para não tocar em nada e não ficar olhando, chamou aquela instalação de trabalho, “isso é um trabalho” disse. “Não mexam”. A prudência dela fez com que nos desse aquele aviso mas, a bem da verdade, eu estava tão impressionado e assustado que jamais chegaria perto de qualquer um daqueles objetos.

O cemitério era um local misterioso demais para mim. Um lugar inspirador de grande reflexão e cuidado. Das lembranças que mantenho da infância, essas são sem sombra de dúvida algumas das mais importantes. As idas ao cemitério eram um passeio não divertido na minha infância, uma obrigação. E sempre era um evento marcante. As imagens dos túmulos, as flores brancas e amarelas, o aglomerado de pessoas, as fotos nas lápides fazem hoje parte da minha paisagem interior. Compõe um importante aspecto da minha mitologia pessoal. Apesar de não frequentar muitos cemitérios na vida adulta, não mantenho viva essa tradição, a presença naquele local durante a primeira etapa da vida criou uma permanente sensação de seriedade e respeito pelos ritos fúnebres, pela morte e pela dor dos que ficam. Sentimentos profundamente enraizados no senso religioso e espiritual que norteia a minha visão de mundo.

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