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quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Aceito a ajuda


Neste ano mudei de ideia sobre o setembro amarelo. Geralmente eu ignorava a passagem dessa época e achava que não passava de demagogia política. Achava besteira. Mas dessa vez, não. Acho que meu coração amoleceu um pouco. Mudei minha percepção e passei o mês todo aceitando todo o material que chegou até mim em função da campanha.

Foi uma experiência bastante interessante. Pude ler várias coisas legais, assisti entrevistas, li panfletos e ouvi pronunciamentos a respeito da depressão e medidas de prevenção ao suicídio. Me deixei levar pelo clima e acabei eu mesmo produzindo alguns textos especiais, no qual abri um pouco da minha história pessoal, para publicar aqui. Bem interessante entrar nessa egrégora. Pude perceber que é sim uma campanha útil, que pode surtir bons resultados. Seja oferecendo serviços de ajuda a quem esteja buscando ou simplesmente fomentando o debate sobre o assunto. É legal ver que os problemas que enfrento há tanto tempo não são meras invenções da minha cabeça, mas sim uma situação pelo qual tem-se buscado soluções de várias formas. E para quem está do lado de dentro, basta deixar de ser um pouco carrancudo e aceitar a ajuda que está sendo oferecida. Me fez realmente bem ver tanta gente engajada fazendo um trabalho sério, sem manipulação intencional para parecer herói de uma causa nobre para ganhar likes e visualizações. Na verdade o que mais encontrei foram pessoas falando de seus sentimentos profundos e sinceros sobre o que passaram em suas próprias vidas ou sobre alguma fatalidade que tenham enfrentando com alguém próximo.

Um dos pensamentos mais neutralizadores da vontade de morrer para mim sempre foi o significado que a minha vida tem nas vidas de outras pessoas. O que a minha presença neste mundo provoca em gente que se importa comigo. Sempre que me ocorre uma ideia besta, porém incontrolável, de que morrer seria melhor do que viver, recorro a lembrança de pessoas que diversas vezes demonstraram sofrer com as bobagens que eu já fiz. Familiares e amigos próximos que muito além de palavras, já me disseram com os olhos e atitudes o quanto se importam comigo. E por essas pessoas eu sinto que devo continuar vivendo. Não tenho o direito de matar o filho, o primo, o amigo, o sobrinho nem o irmão de ninguém. E é exatamente isso que eu estaria fazendo caso trabalhasse pela minha própria morte, seja numa tentativa de suicídio de fato ou num comportamento autodestrutivo de longo prazo. É minha responsabilidade cuidar de mim mesmo também pelo fato de isso ser parte de cuidar dos outros. Uma pessoa que se mata causa um ferimento enorme num círculo imprevisível de pessoas. Muitas vezes a dor simplesmente não some nunca mais e os sentimentos que nascem disso são terríveis demais para lidar. Um suicídio acabada literalmente com uma vida mas, na prática, reverbera pelas vidas de muitas outras pessoas. E é egoísmo não levar isso em consideração quando se pensa sobre o assunto. Uma tragédia que será lembrada por décadas e trará sofrimento a terceiros é o que sobra na sombra do suicida.

Eu tive um comportamento autodestrutivo por muito, muito tempo. Fiz coisas que me arrependo e me envergonho. E tudo sempre pensando exclusivamente nas minhas sensações e emoções, sem avaliar o impacto das minhas escolhas nos outros. Não falo de levar em consideração a opinião, me refiro a algo mais sutil do que isso. O quanto os efeitos das minhas decisões interferiam na vida das pessoas que se importam comigo? Eu simplesmente não levava isso em consideração antes de escolher esse ou aquele caminho. Na última vez que tentei me matar a coisa foi tão grave que até hoje, passados quatro anos do acontecido, noto que as pessoas não foram mais as mesmas comigo. Algo ficou marcado e não pode ser traduzido em palavras. Eles não esquecem e posso perceber pela forma como me tratam. Em um caso mais visível, noto em vários momentos que há quem, inclusive, não me perdoe pelo que fiz. Considere em seu íntimo que eu não tinha o direito de fazer o que fiz - de fato penso que não o tinha e continuo não o tendo - e sinta um certo rancor por mim, uma tristeza que não vai sumir. Eu magoei essas pessoas ameaçando tirar algo importante delas. Isso causa efeitos imprevisíveis e algumas vezes irreversíveis.

Mas tento seguir em frente, tento fazer as coisas certas a partir de agora. Se pequei por arrogância no passado, que sirva de lição para não repetir o erro no futuro. Busco corrigir minhas ações ao máximo, viver cada dia buscando acertar ao máximo cada passo e cada decisão. Sem negligenciar os alertas que aprendi a identificar em mim mesmo. Faço isso por mim, por ser meu dever, mas também porque aprendi que minha vida não pertence somente a mim. Cada pessoa com quem eu criei um laço em algum momento está envolvida nesse emaranhado de conexões, e, sobretudo, é meu dever também zelar pelo bem das pessoas com quem eu me importo. Calcular o efeito das minhas decisões também na vida de quem vive a sua vida junto comigo através do coração e da alma.

Esse ano aceitei a ajuda vinda pelo setembro amarelo, como tenho aceitado humildemente minhas fraquezas e necessidades. E foi uma experiência muito positiva. Quem dera eu tivesse aceitado antes, talvez não precisasse passar por tudo que passei. Mas é tudo vida que segue. O que sou hoje é resultado de tudo que passei e acumulei. E se tem algo que aprendi até aqui é reconhecer o quanto as outras pessoas são importantes no processo todo. Seja nos impactos das minhas decisões ou na leitura de relatos de estranhos, sempre é bom olhar para o lado e ver que não estou sozinho. A partir daqui, planejo valorizar o trabalho que é feito nessa época do ano e aproveitar ao máximo tudo que chegar a mim. Porque é tudo pelo bem, e é pelo bem que eu vivo agora.

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Relato, parte 3 (final) - O surto


Hoje vi uma amiga reclamando sobre as agruras da sua vida numa rede social. Em uma frase curta ela disse que o ano atual a estava "atropelando" e que era difícil manter a calma. Para concluir o pensamento, ela disse que estava sentindo como se estivesse se equilibrando numa linha tênue entre a sanidade e um surto psicótico. Ler aquilo me fez ter uma erupção de pensamentos. “Ter um surto” é algo que, infelizmente, eu compreendo bem do que se trata. Eu já tive um surto, uma vez, tempos atrás. Causado pela combinação explosiva de altos níveis de estresse com um tipo bastante irresponsável de automedicação. O médico que me tratou, depois de passada a crise, disse ter sido um surto esquizofrênico, o que imagino ser tão grave quanto o dito psicótico. Sinceramente, não tenho conhecimento sobre as características que possam diferenciar um surto esquizofrênico de um surto psicótico. Não sei até que ponto o que a minha amiga disse em suas redes sociais é fidedigno à realidade e o tanto que pode ser exagero melodramático mas, pelo menos pra mim, qualquer aproximação com o risco de um surto dispara uma avalanche de lembranças e emoções sensivelmente estomacais. Qualquer possibilidade de rumar para uma situação daquela novamente, por menor que seja, ativa em mim todos os alarmes possíveis.

O dia em que surtei foi o pior dia da minha vida. Eu vinha, já havia alguns anos, lidando com uma quantidade de problemas e desfechos muito mais pesados do que eu julgava ser capaz de suportar. A vida pessoal, financeira e profissional eram torturantes na maior parte do tempo. Eu experimentava pressão familiar em alto grau para que ganhasse mais dinheiro e mudasse meu jeito de ser, coisa que todas as famílias, creio, fazem com seus jovens. O que não reduz o tamanho do problema, já que de forma alguma o fato de todas, ou quase todas, as famílias fazerem algo torna correta a prática. Na vida financeira eu estava atado a dívidas que comiam quase todos os rendimentos mensais, rendimentos esses fruto de um trabalho que me destruía física e psicologicamente. Aliás, muito provavelmente tenha sido o meu trabalho o principal catalisador para tudo o que aconteceu.

Me formei em Ciência Política, e, desde antes da conclusão do curso já trabalhava com politicagens. Só a descrição da minha profissão já daria um grande texto explicativo assustadoramente explícito. Mas, para evitar maiores delongas, me restringirei a dizer que o trabalho consiste em algo onde aquilo que acontece nas teorias de conspiração acontece de verdade. Participar e me proteger de conspirações é basicamente o conhecimento básico da função a desempenhar. Isso associado ao mau caratismo, à inveja e à soberba da maioria das pessoas com quem tinha de lidar diariamente, durante anos, provocou diversos ferimentos graves no meu psicológico. A política, e, por relação, o poder atraem o que existe de pior entre as pessoas. Todo tipo de psicopata, canalha, arrogante, mentiroso e oportunista encontra um lugar confortável no meio político. Eu chamava meu ambiente de trabalho de “manicômio” e “masmorra das vaidades”, como forma de tentar nomear o que eu via. Era constantemente vítima de injustiças e/ou testemunha de algum evento amargamente injusto contra alguém. A burrice e a falta de caráter sendo premiada na mesma proporção que a honestidade e a bondade eram ridicularizadas. Uma convivência diária com pessoas absolutamente asquerosas, cruéis e movidas por inveja, com raríssimas exceções. Aliás, exceções essas que enfrentavam um sofrimento certamente semelhante ao meu. Preso à dívidas e a expectativa familiar de um futuro digno, os dias pareciam uma pena, um castigo sem perspectiva de fim. Minha vida era suportar pressão enquanto era torturado psicologicamente em todos os aspectos possíveis. Não era de se estranhar que tivesse um comportamento depressivo, que pensasse na morte como um alívio, que tivesse sérias dificuldades para dormir, que abusasse de álcool. Uma vida miserável, de fato. Mas, como diz a regra de Murphy, nada é tão ruim que não possa piorar.

O cenário externo não era lá dos melhores, mas o problema mais grave era interno. Já faziam anos que enfrentava um quadro depressivo, com algumas tentativas frustradas de tratamento e muitas escolhas erradas. De fato, abandonar o tratamento talvez tenha sido uma das escolhas mais estúpidas que fiz. Dentro da minha cabeça o estado das coisas era terrível. Os pensamentos eram acelerados, desordenados, um caos que parecia uma sequência de explosões. As imagens se formavam com grande velocidade, as emoções eram totalmente bagunçadas, sentia ondas de sensações misturadas e exageradas durante todo o dia, acompanhadas de imagens mentais que simulavam possibilidades do que poderia acontecer comigo e relembravam situações na maioria desagradáveis. Como uma TV onde passam predominantemente programações perturbadoras, mudando de canal em altíssima velocidade. Aliás a alegoria da televisão é propícia devido a outro fato, como pano de fundo das imagens e sensações havia uma coisa que eu chamo de “ruído”. Era como se minha mente emitisse uma certa frequência, parecido com aquele barulho que os aparelhos televisores antigos faziam quando estavam ligados mas não sintonizados em nenhum canal. Não falo sobre o chiado, mas um som bem sutil que saía das velhas TVs de tubo simplesmente por estarem ligadas, um zumbido baixo e constante. Eu sentia e ouvia esse ruído o dia inteiro, às vezes quando me concentrava nele podia percebê-lo com mais clareza, ao ponto da mente formar imagens de milhões de insetos andando uns sobre os outros. Mas, no geral, enquanto estava acordado eu experimentava as ondas de atividade mental todas tendo como pano de fundo, esse ruído. E tudo ficava ainda pior na hora de dormir. Desde criança sofro com distúrbios do sono, insônia, episódios de terror noturno, apnéia e paralisia do sono, síndrome das pernas inquietas... Um kit bastante completo de empecilhos para o descanso. Isso somado a ondas e mais ondas de pensamentos e sensações totalmente fora de controle, ideias auto destrutivas, paranoia, medo, angústia, preocupação. Eu simplesmente não conseguia descansar, desligar das situações de cobrança e estresse do dia a dia. E dentro da minha cabeça, tudo reverberava em looping, sendo seguidamente interrompido por estímulos externos e internos.

Ao longo dos anos os problemas e motivos para sentir frustração aumentavam e se acumulavam, e eu achava formas particulares de lidar com a situação. Quando algo me dava prazer, geralmente cometia com aquilo muitos excessos. Tinha uma sede constante e crescente por alívio. Tentava controlar a mente através de experiências religiosas, místicas, meditação, arte. Desenhava nas paredes do meu quarto, pintava telas, escrevia textos de desabafo. E assim levava a vida, entre os tormentos do lado de fora e a sala de torturas do lado de dentro da mente. Achando meios de seguir em frente lidando com cada vez mais e mais infortúnios. Pode parecer uma descrição exagerada, mas não é. A capacidade humana de suportar e resistir é verdadeiramente impressionante. É possível se acostumar com condições absolutamente insuportáveis para os conceitos de normalidade. A resiliência, por vezes, parece infinita, embora não seja. Existe um limite para o que pode ser tolerado, e infelizmente eu encontrei o meu. Como descreverei logo adiante.

Quando estava já no que acredito ser o auge do sofrimento rotineiro, comecei a buscar formas mais extremas para lidar com o que sentia. Queria algo com efeito prático, alívio imediato. Foi quando comecei com os experimentos químicos. Descobri e fiz uso de diversas medicações compradas de forma irregular, fruto de especulação e avaliações equivocadas dos efeitos. Calmantes, relaxantes musculares, analgésicos, remédios com efeitos colaterais psico ativos. Tudo regado a muito álcool. Cheguei a fazer uso de uma substância apelidada de “droga dos músicos de orquestra”, o cloridrato de propanolol, que, pelo que diziam nos fóruns era uma substância desenvolvida para pessoas que não podiam se expor a emoções fortes e agia reduzindo a atividade emocional. Os músicos tomavam super doses deste medicamento para evitar ficarem nervosos nas apresentações e isso atrapalhar o seu desempenho. Comprei algumas cartelas dos comprimidos e passei a buscar a dose ideal através da tentativa e erro, não deu certo. O ruído continuava, as ondas de pensamentos continuavam, e as emoções não sumiam, só ficavam ainda mais confusas. Foi quando decidi extrapolar.

Após algumas pesquisas na internet, conversas com amigos entendidos e umas experiências empíricas, concluí que o uso periódico de maconha poderia me ajudar a enfrentar as situações tortuosas que configuravam minha rotina. Usando a droga, que quase todos diziam ser segura, como um calmante para alguém que vive nervoso. Essa foi, talvez, a escolha mais estúpida que já fiz na vida toda.

Passei a usar a erva como bengala toda vez que sentia que a situação precisava de uma válvula de escape. A maconha tem um efeito psicodélico, altera as percepções, cria sensações e imagens mentais que parecem experiências místicas, simulam interações com forças da natureza que parecem, por vezes, verdadeiras viagens cósmicas. Sinestesia, hipersensibilidade dos sentidos, analgesia, parecia tudo muito espiritual, muito etéreo. E nem sempre eram sensações positivas, frequentemente o processo era substancialmente angustiante e assustador. O pico do efeito se dava poucos minutos após aspirar a fumaça e a “viagem” toda levava cerca de uma hora, as vezes um pouco mais noutras um pouco menos. Ao final, restava uma sensação de relaxamento e calma muito agradáveis. Como uma paz interna silenciosa e confortável após uma tempestade. Essa sensação de paz me trazia um alívio indescritível em relação às ansiedades e frustrações. Era como jogar água fria sobre a pele em chamas. Minha mente se acalmava, o ruído sumia, os problemas pareciam menores e ocupavam menos espaço na mente. As coisas ruins, os tormentos, os pensamentos negativos continuavam lá, mas pareciam bem menos importantes. Havia silêncio. E era uma sensação relativamente duradoura, permanecia por três, quatro dias. Às vezes levava uma semana para o ruído voltar. Parecia que tinha finalmente encontrado a solução que tanto busquei. E por causa dos depoimentos de usuários de longa data, que afirmavam levarem suas vidas normalmente com a maconha como complemento, acreditei que o alívio tinha chegado para ficar. Acreditei ter encontrado uma solução como a que esperava, direta e eficiente para a minha condição. A prótese que supria minha deficiência. Não podia estar mais enganado.

Como muitos sabem, um dos efeitos do uso de substâncias psico ativas é o aumento da resistência aos efeitos, exigindo doses cada vez maiores e com maior frequência para obter o mesmo resultado. Quer dizer, chamar de mesmo resultado é exagero. Os efeitos das primeiras vezes nunca mais se repetem com a mesma intensidade, no máximo se consegue uma versão próxima do que foi. Embora a esperança de repetir a experiência seja permanente, ela é infundada. E isso leva a progressivamente a aumentar o uso, tanto na quantidade de substância a ser consumida quanto na frequência com que deve ser usada. Somado a isso, que acredito ser de conhecimento até mesmo do senso comum, existe uma outra contraindicação no uso de maconha que nunca tinha visto ninguém falar: O uso periódico reduz a importância que o usuário dá para tudo que acontece com ele. Conforme o tempo passa, eu me tornava cada vez menos preocupado com tudo o que me acontecia. O que devia irritar já não irritava, o que devia entristecer não entristecia. Uma sensação de neutralidade crescente se formava e aos poucos tomava conta da minha personalidade. Isso pode parecer uma vantagem diante da vida que eu levava, mas de fato não é. É preciso lidar com os problemas, ignorá-los não faz com que desapareçam. Não se importar pode parecer positivo quando se tem que lidar com canalhas no dia a dia mas, começa a ser um problema quando a memória começa a falhar e isso não vira alvo de preocupação. Ao longo do tempo, eu supri minhas necessidades emocionais com o uso da erva, e me tornei um usuário crescentemente resistente aos efeitos. Se por um lado eu entrava em embates cada vez mais audaciosos no trabalho sem dar a mínima para as consequências, por outro me tornara incapaz de escrever uma resenha sobre um filme que acabara de assistir. Ao passo que a droga me possibilitava experiências sensoriais intensas, elas não formavam lembranças. Eu ficava dia após dia cada vez menos consciente do mundo ao meu redor e definitivamente não me importava com isso. Isso afetou minhas relações, me levando a escolher a companhia de pessoas de má índole ou que simplesmente não nutriam por mim qualquer respeito ou apreço. Não apenas no trabalho, mas também na vida pessoal. Estava cada vez mais cercado de pessoas más, peçonhentas. Me expunha a situações perigosas, frequentava ambientes perigosos, tinhas ideias erradas sobre como lidar com os problemas usando meios moralmente condenáveis. Tudo sem me importar com nada.

Com cada vez mais frequência, diante dos graves problemas com que tinha de lidar, eu consumia mais e mais erva. Os problemas eram cada vez mais complexos, mas minha forma de lidar era sempre a mesma: me chapar. Aquilo havia se tornado um grande estilo de vida, muito mais do que o desejo inicial de usar apenas como uma medicação. Como remédio o efeito foi realmente o esperado, eu passava pelas situações com uma tranquilidade sobrenatural, parecia inabalável. Tomava decisões difíceis sem pestanejar, e relaxava como nunca quando descansava. Digo quando descansava porque a insônia havia voltado, e para tentar remediar eu fumava mais ainda. Era comum dormir uma ou duas horas por noite. Passava as madrugadas drogado ouvindo música ou assistindo vídeos aleatórios na internet. Apesar da falta de sono, eu me sentia forte diante dos desafios. Nada era intenso o suficiente para me aborrecer. Parecia ter encontrado um segredo do mundo, uma solução mágica para lidar com o sofrimento diário de uma vida frustrada. Mas o destino não tardou em traduzir meu erro.

Minha relação com a maconha durou três anos, entre pausas e usos exagerados. Quando, num belo dia, a própria forma despreocupada com que vinha levando a vida me conduziu a um local onde fui cercado de hostilidade por pessoas que não conhecia. Vou omitir maiores detalhes do que ocorreu para não dar qualquer destaque as miseráveis almas com que eu compartilhava espaço naquele dia. Mas deixo claro que as atitudes deles para comigo foi o que desencadeou a série de eventos que culminou com o que se seguiu. Etava na casa de uma pessoa que julgava erroneamente ser minha amiga, com outros convidados, quando por algum motivo que desconheço alguns presentes passaram a ser hostis comigo, provocarem e ofenderem sem razão. Eu estava sob efeito de álcool e maconha e tudo fica ampliado quando se está bêbado e chapado. Ser mal tratado por estranhos foi como acionar o detonador de uma bomba que a muito estava preparada para explodir. Todo estresse do trabalho e da vida em geral, todas as frustrações, todos os jogos no qual eu estava metido, todas as madrugadas acordado, toda a maquiagem que a droga fez na situação verdadeira dos meus nervos, tudo explodiu de uma só vez. A realidade se tornou algo terrível demais para trazer aqui em palavras e eu tive o tal surto. As lembranças daquele dia ocupam na minha mente um espaço muito maior do que eu gostaria que ocupassem. Momentos de terror que espero tenham sido um episódio único nessa vida e nunca mais cheguem sequer próximo de se repetirem. Cercado de ações naturalmente assustadoras e reais, aquelas pessoas estavam mesmo agindo daquele jeito, tinham os seus efeitos ampliados exponencialmente na minha percepção, me levando ao pânico completo. Foi ali que aprendi ser possível “quebrar” uma pessoa, como se fosse vidro. Não importa a resistência que ofereça, com pressão suficiente a estrutura vai certamente se partir. E quando quebra, uma pessoa não consegue usar seus sentidos direito, nem seus pensamentos, nem nenhuma de suas faculdades. É como uma pane geral no sistema central. Como um computador infestado de vírus e softwares maliciosos que opera com a plenitude de seu potencial, porém absolutamente desordenado, com funções corrompidas. Eu lembro de tudo o que aconteceu, lembro do que senti e do que pensei na hora, das conclusões absurdas que tive. Tudo o que as pessoas que estavam lá realmente fizeram em detrimento ao que eu interpretava estar acontecendo. A experiência mais apavorante de toda minha vida. A própria realidade, o mundo real, vira um pesadelo que parece não ter fim e a mente sugere soluções gradualmente mais e mais drásticas para enfrentar as situações que os delírios fazem parecer absolutamente reais. A experiência foi intensa o suficiente para mudar minha vida. Vida que, diga-se de passagem, por pouco não perdi.

Hoje meu corpo, assim como minha alma, carregam cicatrizes do que vivi naquele dia. Foi como nascer novamente. Surtar é uma experiência indescritível, intraduzível em palavras. De repente a própria realidade é substituída por outra, na qual as coisas que fazem sentido são terrivelmente distorcidas. Eu tinha uma certeza absoluta do que havia concluído, não tinha espaço para qualquer dúvida. Estava incrivelmente equivocado no que considerava concreto, mas não tinha qualquer pensamento que levasse a crer o contrário. Por mais absurda que fosse a situação que eu acreditava estar inserido, naquele momento era a mais pura realidade. E eu precisava morrer. Minha morte era a única solução possível, a única coisa a se fazer. O único desfecho honroso e útil, a única forma de combater o mal. Por isso perfurei diversas vezes o meu pescoço e o pulso esquerdo, usando a ponta de uma faca de mesa. As perfurações, apesar de graves, miraculosamente não atingiram nenhuma artéria. Mas foram profundas o suficiente para me fazer sangrar quase até não haver possibilidade de sobreviver. Foram umas duas ou três horas sangrando em parar, encharcando o colchão da cama onde estava. Estar encharcado do próprio sangue é inesquecível. A dor, o fedor, a viscosidade grudenta, o rio quente que brota da ferida e escorre pela pele, o som das gotas de sangue pingando. Os pensamentos cooperando para que tudo ocorresse daquela forma. A sensação do corpo estar pouco a pouco se tornando apenas carne fria acompanhado da convicção de estar fazendo a coisa certa.

Fui hospitalizado, levado para a emergência. Passei um pequeno pesadelo no hospital por conta de umas mentiras ao meu respeito que a pessoa que me levou até lá contou pra tentar se safar da responsabilidade do que ajudou a fazer. Mas no final das contas sobrevivi, e, após um período de reabilitação de mais ou menos um mês, no qual fiquei internado numa clínica boa e digna, voltei para casa. Estava traumatizado ao ponto de ver inimigos me perseguindo em todos os cantos. Achava que meu celular estava grampeado por inimigos que me perseguiriam até a morte. Se via um técnico mexendo no poste de luz em frente de casa já imaginava que eram meus inimigos instalando escutas. Não conseguia ver qualquer cena de violência na TV que ficava totalmente perturbado. Estava totalmente paranóico e desesperado. Parecia que tinha ficado louco de vez e que nunca mais teria paz. Depois de sair da clínica fiquei ainda dois meses afastado do trabalho, delirando em casa. Mas foi aí que iniciei novamente o tratamento para meus problemas psicológicos. Frequentava psiquiatra e psicóloga semanalmente, me abstinha de qualquer bebida alcóolica e buscava encontrar junto com o médico a dose certa do remédio certo. Com o pausa forçada na rotina e por conta de um tratamento iniciado ainda quando afastado, aos poucos os efeitos colaterais do ocorrido foram ficando mais suportáveis. Quando uma pessoa quebra como eu quebrei, é preciso reconstruir certas estruturas para poder seguir em frente. Com muito cuidado e empenho, cuidei de aproveitar a oportunidade de tratamento que me foi oferecida ao máximo, seguindo à risca todas as orientações e não cedendo a pensamentos de desistência e desânimo. Fazia o certo, o que devia ser feito. E não o que me sentia compelido a fazer. Foi um tempo de recuperação muito intenso no qual praticamente tive outro nascimento. Eu reconhecia que estava desequilibrado, podia notar a loucura em mim, mas desta vez queria fazer a boa escolha. Queria combater o que tinha de errado comigo. Queria fazer a coisa certa.

Foram meses de tratamento até que pudesse realmente me acalmar e aprender a lidar com as memórias do que tinha acontecido. Aos poucos a paranóia foi diminuindo, o medo generalizado foi sumindo e fui gradualmente voltando ao normal. Depois de um tempo pude voltar ao trabalho onde retomei as rotinas e obrigações e passei a lidar de forma sóbria com tudo que acontecia. Reduzi o contato com as pessoas que me faziam mal o máximo que pude e passei a trabalhar minha mente para não levar os problemas do trabalho para casa. Deixava para resolver no dia seguinte o que podia e combatia os pensamentos de preocupação. Fazia psicoterapia duas a três vezes na semana, tomava religiosamente os remédios, buscava dormir o mais cedo possível, cuidava de mim. Aceitei a ajuda das pessoas a minha volta que se preocupavam comigo, tentei me redimir por ter sido um idiota e ter feito tantas coisas erradas. Encarei como uma chance de fazer um recomeço. Uma oportunidade de abandonar o erro. E segui melhorando aos poucos.

Hoje posso dizer que superei razoavelmente bem tudo o que aconteceu e levo uma vida muito mais equilibrada e saudável. Me tornei outra pessoa. Faço uso contínuo de medicamentos prescritos pelo médico e faço tratamento psicológico uma ou duas vezes por semana com a mesma psicóloga que me ajudou desde que tive a crise. Os problemas continuam, os infortúnios continuam, a super atividade mental continua. Mas mudei a forma de enfrentá-los. Os remédios ajudam com os problemas do sono e finalmente consigo dormir com certa normalidade. O ruído também desapareceu em função da medicação certa. Desenvolvi aversão a qualquer sensação de embriaguez, me abstenho de ingerir qualquer substância que mexa na percepção. Sou um viciado em lucidez e enfrento as situações com a cara limpa e a coragem. Nunca fui ateu, mas me tornei sensivelmente mais religioso, na mesma proporção em que me tornei mais reservado. Seleciono cuidadosamente as pessoas com quem me relaciono e jamais me ponho em situações de risco desnecessário. Enquanto escrevo esse texto já me distancio quatro anos daquele dia fatídico do surto. Fui promovido, derrotei diversos canalhas que desapareceram da minha vista no trabalho. Voltei a estudar e ocupo minha mente com tarefas e leitura, muito mais do que com qualquer outra coisa.

Julgo ser hoje uma versão de mim mesmo muito melhor do que fui no passado e, dessa vez, com a perspectiva de melhorar ainda mais com o passar do tempo e das histórias. E tenho um cuidado extremo comigo mesmo, para me manter o mais longe possível de qualquer fronteira com a insanidade ou surtos de qualquer natureza. Fico atento aos desânimos e preguiças que surgem, ao mau humor, às insônias e aos medos e tristezas súbitas. Tudo que me parece desviar do caminho. Não negligencio mais nada em mim mesmo e busco lidar da melhor forma possível. Busco estar bem, tão bem quanto possível, o máximo de tempo que consigo. E não faço mais das frustrações o cenário predominante da minha vida. O que de ruim acontece, busco aceitar e ver da forma menos sofrida, tento achar meios para entender o que acontece e busco reagir positivamente. Muito, muito longe de ser uma vida perfeita, mas tento fazer as coisas certas. Tento me cuidar e manter a cabeça limpa de qualquer coisa que possa me fazer mal, sejam pensamentos tóxicos ou substâncias tóxicas.

Engraçado como tanta coisa pode caber num relâmpago de pensamento como o que eu tive lendo a postagem da minha amiga. Gostaria de fazer ela saber que o receio dela em surtar é bem mais real do que ela provavelmente pensa. Gostaria que todos pudessem saber disso. Humanos quebram sobre pressão, uns precisam de mais pressão, outros de menos. Mas todos quebram. E é prudente cuidar para que isso não aconteça. Saber identificar e medir os indícios do quanto o risco de surtar está próximo e lidar com eles de forma a se afastar da fronteira do surto. A vida é cheia de problemas e coisas desagradáveis. As perspectivas de futuro quase nunca são as ideais e quase todos os caminhos são tortuosos. É preciso encontrar sua própria forma de lidar com o sofrimento de forma a não deixar ele dominar sua mente, sua vida. É preciso cuidado para não quebrar. Mas, se quebrar, é preciso ter força para se reconstruir. Aceitar as ajudas que surjam e reconhecer a fraqueza diante da situação. Querer melhorar e tomar atitudes para isso. Fazer o que é certo e esperar que o tempo passe e tudo se ajeite. Foi assim que aconteceu pra mim e assim me tornei a pessoa que sou hoje.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Relato, parte 2 - Escolhas ruins


Os meses se arrastavam comigo naquela condição deplorável. Família e amigos faziam tudo que podiam para ajudar mas eu simplesmente estava preso naquela condição. Deprimido em tempo integral. Por vezes ainda tomava alguns porres, mesmo tomando medicamentos controlados. O que entristecia as pessoas que gostavam de mim. Mas não tinha o que fazer, eu não estava no comando de nada na minha vida e vez por outra decidia que me entorpecer de álcool era a melhor coisa a se fazer.

Por intermédio da minha mãe, iniciei tratamento com um outro psiquiatra e fiz também algumas seções de análise. Mas não era comprometido, não tomava os remédios nos horários certos, bebia, faltava às sessões com a psicanalista. Desperdiçava todo esforço que era feito por mim. E passava os dias afundado em pensamentos tumultuados e autopiedade. Por estar sem trabalhar e não estar cursando nada, me sentia um inútil, a vida não tinha sentido. Eu não via perspectiva de melhora nas minhas condições e esperava cada vez menos de mim mesmo.

Em um momento de desespero, pedi para ser internado em alguma clínica. Pensei que precisava de um tratamento mais intenso do que repouso e medicamentos, e achava que encontraria isso numa internação. Depois de procurar bastante, acabamos encontrando um lugar em que poderia ficar. Um grande e antigo hospital psiquiátrico que atendia pelo sistema público de saúde. Foi uma das piores experiências da minha vida.

Por ser novato, fiquei na ala de contenção, juntamente com algumas dezenas de homens nas mais variadas condições mentais. O ambiente era extremamente desconfortável. Usando roupas velhas e sem dono, dadas pelos enfermeiros, cercado de lunáticos e viciados de todos os tipos. Encarcerado em uma pequena casa com grades no meio do quintal do hospital. Fiquei sabendo que a “segurança” do local era feita pelos próprios internos, um grupo de homens que agrediam fisicamente quando a administração julgasse necessário. No quarto em que fiquei com outros vinte havia um sujeito que os internos acusavam de ter tentado estuprar a própria irmã. Pessoas escorrendo saliva, presas em um comportamento repetitivo diante da parede, andando de um lado para o outro sem motivo, banho coletivo, refeições dentro de um pote somente podendo usar uma colher, internos agindo a serviço do hospital dando ordens para se levantar, comer, tomar banho... Passei dois dias e uma noite naquele lugar e, por obra da providência divina, os enfermeiros gostaram do meu comportamento e permitiram que recebesse a visita da minha mãe logo no segundo dia, o que não era o procedimento padrão. Fui informado que o isolamento era de, no mínimo, 7 dias. E antes disso nem mesmo a visitação de parentes era permitida. Mas, como eu disse, milagorasamente gostaram do meu comportamento e permitiram que eu falasse com minha mãe. Para quem pedi em lágrimas e soluços que me tirasse imediatamente de lá. Com muito esforço e algumas ameaças, minha mãe conseguiu que minha internação fosse revogada e naquele mesmo dia pude ir para casa, onde chorei por alguns dias, feliz por estar longe daquele lugar.

O tempo passou e eu seguia irresponsável quanto aos conselhos do psiquiatra e às seções de terapia. Não sentia um mínimo de motivação para fazer o certo e desperdiçava os dias dormindo. Minha mãe me contou posteriormente que o médico fez ela assinar um termo de responsabilidade sobre mim, por ser sim um paciente cuja internação era recomendada. Eu me negava terminantemente a ser internado novamente, mesmo com o argumento de uma clínica melhor. Por fim, acabei abandonando todo o tratamento de vez. Parei com as seções e com os remédios por conta própria. A situação permaneceu ruim e repetitiva por mais ou menos dois anos.

Eu tinha então em torno de 25 anos quando por influência de um amigo passei a me ocupar com planos de um futuro melhor. Embora o álcool continuasse bastante presente na minha vida, iniciei um período de desenvolvimento bem importante que acabou norteando os principais acontecimentos daquela fase em diante. Um certo dia recebi um panfleto de propaganda de um curso de idioma em uma associação sem fins lucrativos e resolvi me inscrever. Foi o começo de uma fase de esforço e descobertas. Fiz o curso até o final e participei como voluntário da organização da associação por um tempo. Foi um tempo importante onde minha vida parecia começar a fazer sentido. Nesse espírito comecei uma graduação em uma faculdade que cuja mensalidade era barata, perto de casa, e em função do curso acabei sendo impelido a trabalhar na área, em um estágio.

Livre das principais condutas destrutivas, mas longe de estar bem, passei a me dedicar ao trabalho e aos temas de estudo da faculdade. Tudo parecia melhor, não fossem os acessos de tristeza e a constante sensação de mal iminente que me acompanhava todos os dias. Os anos passaram e sempre que pude tentei anestesiar a angústia com a bebida, o que nunca foi uma boa ideia.

O tempo passou e entre idas e vindas me formei e fui promovido no trabalho algumas vezes, conquistando espaço em um mercado bastante concorrido. O trabalho havia se tornado minha principal preocupação, diversas vezes sendo a prioridade das minhas escolhas. Mesmo diante de questões pessoais e familiares importantes os compromissos do trabalho sempre prevaleciam. Com isso minha vida foi se tornando mais e mais o que vivia no trabalho, abrindo mão de quase tudo fora dele.

Ocorre que o trabalho em si era digno, porém inacreditavelmente estressante. O convívio com pessoas de péssima índole, as tarefas sem sentido, a sensação de estar me dedicando tanto a algo que não estava edificando nada no meu futuro me corroíam por dentro. A cada dia que passava, eu me tornava mais e mais cheio de frustração, ódio e rancor. Passei a ter problemas cada vez mais graves com insônia e crises de ansiedade. O trabalho que no começo me deu sentido à vida, passou a me fazer mal e ser a causa de problemas psicológicos ainda piores que os anteriores. Por ser bastante irresponsável com as contas pessoais, vivia com graves problemas financeiros, endividado, estressado e frustrado. Sem a possibilidade de um futuro melhor, apesar de trabalhar muito. Seguia em frente achando formas de lidar com os problemas que surgiam e arcando com as consequências das escolhas que fazia. A vontade de me entorpecer e sair da realidade era constante, não suportava a vida que vinha levando. Já não era um inútil completo, mas o que tinha me tornado era muito frustrante. Buscava fontes de prazer e alívio nos mais variados meios. Então comecei a buscar substâncias que me aliviassem o sofrimento.

No começo foram diversos comprimidos, conseguidos através de contatos que os viabilizavam sem qualquer tipo de receita. Experimentei calmantes e controladores de humor que pesquisava na internet, mas nada parecia ser suficiente. Me automedicava sem nenhum critério. Foi quando decidi apelar para a maconha. Passei a fazer uso gradualmente, uma ou duas vezes por semana no começo e diariamente depois de três anos. A erva passou a ser minha válvula de escape, tudo parecia tolerável se eu pudesse fumar e me chapar nas horas de folga. Segui trabalhando e enfrentando os problemas da vida cada vez mais imerso no mundo canábico. Descobri uma vasta e profunda cultura do uso da planta e sentia que havia encontrado a resposta para a angústia permanente da minha vida.

Sem perceber, a droga foi ocupando bem mais espaço do que eu havia planejado e eu já não queria mais ver o mundo sóbrio. Passava sob efeito dos canabinóides praticamente todos os dias, muitas vezes começando o dia fumando antes do café. Ainda tinha crises de insônia e sentia que as coisas não iam bem. Mas já não me importava tanto.

Levei as coisas dessa maneira até o dia em que aconteceu o que hoje chamo de o pior dia da minha vida. Tinha 34 anos quando surtei.

Esse é um momento bastante importante desta breve narrativa resumida dos fatos e por isso darei uma atenção especial. A seguir, descreverei como foi o surto que tive e quais foram as consequências. Assim como o processo de recuperação e as reflexões que pude fazer sobre tudo o que aconteceu.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Relato, parte 1 - Algo errado


A primeira vez que eu senti que havia algo errado comigo foi na adolescência. Antes disso não me lembro de notar nada que chamasse a atenção. Fui uma criança saudável, tive uma infância boa na qual não me faltou absolutamente nada. Passei os primeiros anos de vida de forma bastante normal, embora sempre tenha manifestado uma personalidade um pouco excêntrica e enfrentado bullying na escola. Por ter desde sempre um certo gosto pela solidão, passei bastante tempo me entretendo com atividades solitárias como leitura, videogames, assistir filmes ou ouvir música. Conforme fui crescendo esse hábito se consolidou e me tornei um adolescente um tanto reservado, que gostava de ficar sozinho com suas coisas. Passava os dias entre compromissos escolares e os devaneios vindos da TV, rádio, livros e revistas que consumia com voracidade. Por isso, ninguém nunca notaria uma mudança de motivação para o meu comportamento solitário. Com poucas, porém boas, amizades, notei por volta dos 15 anos que nutria um sentimento confuso no peito. Um vazio, uma certa tristeza sem motivo claro. Uma angústia permanente cuja intensidade variava de acordo com o dia. E por isso passei a me isolar ainda mais do mundo, o que não foi percebido por ninguém, já que todos que me conheciam estavam acostumados a me ver curtindo momentos sozinho. Mas aquilo era diferente, era ruim, bem ruim, me trazia sofrimento. Já não sentia mais alegria nas coisas que fazia.

Graças aos amigos, encontrei na música uma poderosa válvula de escape para esse sentimento. Descobri estilos musicais como o metal extremo e inúmeras variações de gothic, o que me proporcionou uma grande jornada por sensações muito intensas. Ao ponto de imergir na estética e assumir uma aparência relacionada à essa cultura. Minhas roupas passavam a traduzir minha percepção do mundo, sempre de preto e usando adereços agressivos. Cabelo comprido, coturnos, camisetas de banda, braceletes pontudos, caveiras… Vesti uma carapaça e tinha me tornado um típico metaleiro.

Lembro de ter procurado ajuda médica uma vez nessa época, no posto de saúde da cidade pequena em que morava. Uma médica psiquiatra mau humorada que ficava digitando no computador enquanto eu falava sobre a sensação constante de que algo ruim ia acontecer, sobre não conseguir dormir a noite e sobre a tristeza sem motivo que as vezes me derrubava na cama por dias. Falei tudo o que sentia e ao final ouvi que aquele serviço que ela prestava não era para esse tipo de caso. Que estava ali para atender casos graves em que as pessoas estejam se colocando em risco ou aos seus familiares. E recomendou que eu procurasse uma clínica particular para fazer psicoterapia. Como não havia opções na cidade e não tinha comentado sobre a iniciativa de procurar um psiquiatra com meus pais, resolvi esquecer o assunto.

Foram anos naquela situação, sempre com permanente sensação de que havia algo errado acontecendo no meu interior. Então, por imaturidade, resolvi encher a vida com tudo que pudesse me ajudar a extravasar. Desde os já referidos estilos musicais, prática de artes marciais até incontáveis excessos cometidos com comida e consumo de álcool. Foi nessa época que fiz os primeiros ferimentos intencionais em mim mesmo. Cicatrizes de arranhões e queimaduras de cigarro começaram a povoar minha pele em partes onde as roupas cobriam. Meu comportamento se tornou gradualmente mais e mais desajustado, inconsequente ao ponto de pôr minha vida em risco diversas vezes. Posso dizer que vivi o mais intensa e irresponsavelmente que pude até, quando, por volta dos 22 anos, comecei a trilhar um caminho substancialmente ainda mais perigoso. Além dos excessos de sempre, havia me envolvido com uso de drogas como remédios, chás alucinógenos e cocaína. Me julgava ser um “surfista das ondas cerebrais”, deslizando entre as sensações causadas pelas substâncias, explorando os estados alterados de consciência. Isso somado ao interesse que nutria desde a infância por ocultismo e magia me levaram a uma espiral negativa de práticas cada vez mais degradantes. Me tornei conhecido em certos meios que frequentava por episódios de uso excessivo de psicoativos e violência, brigava na rua e me drogava como se fosse um estilo de vida. Através do estudo e prática de rituais ocultistas acabei me vinculando a certos grupos organizados e cheguei a ter seguidores, garotos e garotas que gostavam dessas coisas e viam em mim uma liderança. Com o passar do tempo me tornei mais e mais popular pelas coisas que me dedicava a fazer, enquanto afundava cada vez mais em sombras. Os ferimentos auto infligidos pioravam em gravidade a cada episódio, tendo evoluído de arranhões para profundos cortes feitos com estiletes e queimaduras com metal quente. Minha vida havia se tornado um buraco onde eu cumpria horário na empresa em que trabalhava, no qual meus tios eram proprietários, e gastava o resto do tempo entre atividades condenáveis e com péssima motivação. Entrei e saí de diversas situações de risco enquanto meu corpo se deteriorava pelos excessos e pelo uso frequente de substâncias tóxicas. O consumo de álcool era diário, não dormia sóbrio praticamente nunca. Drogas, fast food, violência, ocultismo, automutilação, lugares e ocasiões perigosas, más companhias… não demorou até que ocorresse a primeira tentativa de suicídio.

Um dia, sentado sozinho e de cueca no sofá do apartamento onde morava, muito bêbado, estiquei as pernas sobre uma cadeira e comecei a cortar minhas coxas com muita força, fazendo cortes muito profundos que escorriam em abundância, criando uma poça no chão. Foram cerca de dez ou doze cortes nas duas pernas, feitos com um estilete muito afiado. O sangue corria em rios grossos e quentes pela pele e se acumulava do chão de tacos, soltando um forte cheiro característico. Não tinha intenção de me matar, apenas fiz o que senti vontade naquele momento e fiquei observando a obra em silêncio. Em função da profundidade dos cortes, o sangramento não reduzia. E eu, em um estado alterado pelo álcool, apenas apreciava o momento. Depois de uns vinte minutos peguei no sono e dormi naquela posição, sentindo o calor dos ferimentos e do sangue na pele. Acordei quatro horas depois e ainda estava sangrando. Minha mente estava um pouco mais clara e rapidamente levantei. A poça no chão estava enorme, e coagulada, parecendo um pudim vermelho. Andei até o banheiro e liguei o chuveiro. Enrolei uma toalha de rosto e pus na boca. Com muita força de vontade esfreguei os cortes com sabonete e suportei a dor urrando enquanto mordia o tecido fofo da toalha. Senti a vista escurecer e as forças faltarem quando caí derrubando a porta do box, que por sorte não era de vidro. Fiquei deitado no chão por alguns minutos e comecei a beber a água morna do chuveiro. Quando a tontura passou, levantei com alguma dificuldade e tentei pôr a porta do box no lugar. Caí novamente e fiquei mais um tempo no chão, descansando. Quando levantei me mexi devagar e deixei a água escorrer sobre os cortes das pernas. Desliguei o chuveiro e saí. Enfaixei as pernas com as ataduras que usava nas aulas de boxe tailandês, bem apertado, e o sangramento parou. Me vesti e fiquei sentado, trêmulo, esperando dar a hora de ir para o trabalho. Comi alguma coisa e saí. Tive que ajustar as faixas algumas vezes durante o dia, a calça preta ficou manchada pelo sangue que transpassou em alguns pontos. Ao final do dia voltei para casa e limpei toda a sujeira que estava seca deixou uma mancha enorme no sofá.

Mesmo que sem a intenção clara de me matar, hoje entendo que aquele episódio foi minha primeira tentativa concreta de suicídio. Embora estivesse levando uma vida que era visivelmente auto destrutiva e por diversas vezes tenha escapado de morrer em situações que eu mesmo criei, considero chamar de tentativa de suicídio somente as vezes em que a causa da morte fosse diretamente uma ação minha, e não as circunstâncias em que me coloquei.

Depois dos cortes nas coxas, que demoraram bastante para cicatrizar, comecei a julgar minha vida um erro e tentar em vão achar uma saída para a angústia que eu sentia. Minha tia notou que meu desempenho no trabalho estava indo de mal a pior e tentou me ajudar. Pagou algumas consultas com um psiquiatra conhecido dela que me receitou antipsicóticos e antidepressivos. Por questões que até hoje não entendo, ele entendeu meu fascínio por ocultismo e espiritismo como algum tipo de alucinação e me receitou remédios fortes, usados para quem vê coisas que não existem. Um equívoco. Fiz o tratamento por um tempo e acabei sendo afastado do trabalho. Então minha vida mudou drasticamente. Minha família não sabia da tentativa de suicídio nem do uso de drogas, mas percebeu que eu não ia bem sozinho. Foi quando voltei a morar com minha mãe e passei a receber amparo familiar. Mudei de cidade, me afastei de todos que compartilhavam aquele mundo autodestrutivo comigo, deixei de lado o ocultismo e parei com as drogas. Me isolei de todos que não fossem minha família ou amigos muito próximos. Fiquei em torno de um ano e pouco recebendo auxílio estatal para tratamento médico, mas o quadro em que eu estava não evoluía. Embora tivesse abandonado a vida perigosa de violência, rituais mágicos e drogas ilícitas, afastado do trabalho eu passava o dia todo em casa medicado, fumando cigarros e esperando o tempo passar. Minha mente parecia uma tempestade furiosa de pensamentos e eu não via qualquer perspectiva de futuro. Com um currículo profissional pobre, pouca experiência e nenhuma possibilidade de estudar ou crescer, eu via um futuro cada vez pior se formar na minha frente. Minha família nunca foi rica, sempre foi preciso muito sacrifício para ter o necessário. E eu, aos vinte e poucos anos, não via qualquer possibilidade de me sustentar ou evoluir de qualquer forma que fosse. Desempregado, doente, sem perspectiva, com uma visão pessimista e catastrófica da vida. Eu estava no fundo do poço e sentia que as coisas só iriam piorar com o passar do tempo. Naquele momento, o ódio que eu sentia do mundo havia dado lugar a uma densa tristeza. Eu não via significado em continuar vivendo.

Mas tinha algo bom naquele inferno, que eram as pessoas que me cercavam e se preocupavam comigo. Que insistiam para eu reagir e me davam ideias de como melhorar. Torciam por mim. Foi nesse momento tenebroso mas em que pude contar com pessoas especiais que começou a jornada que contarei aos poucos em postagens futuras. A partir do momento em que tudo na minha vida passou a ser sobre buscar melhorar e ter uma vida decente, com o apoio da minha família e de alguns poucos amigos que nunca desistiram de mim. Como primeira impressão, deixo essa breve introdução da forma como conto a minha história para que, talvez, sirva para ajudar alguém que se identifique. Hoje tenho 38 anos recém feitos e superei boa parte dos desafios que me surgiram. Vivo uma vida muito mais equilibrada e com fundamento. Lido muito melhor com o vazio que existe dentro de mim, e gostaria de contar como tudo aconteceu além de compartilhar como tem sido experimentar a vida sob uma ótica mais madura e sã. Daqui para frente, as aventuras se tornam ainda mais íntimas. E deixo aqui o convite para que você participe desta viagem.