Hoje
vi uma amiga reclamando sobre as agruras da sua vida numa rede
social. Em uma frase curta ela disse que o ano atual a estava
"atropelando" e que era difícil manter a calma. Para
concluir o pensamento, ela disse que estava sentindo como se
estivesse se equilibrando numa linha tênue entre a sanidade e um
surto psicótico. Ler aquilo me fez ter uma erupção de pensamentos.
“Ter um surto” é algo que, infelizmente, eu compreendo bem do
que se trata. Eu já tive um surto, uma vez, tempos atrás. Causado
pela combinação explosiva de altos níveis de estresse com um tipo
bastante irresponsável de automedicação. O médico que me tratou,
depois de passada a crise, disse ter sido um surto esquizofrênico, o
que imagino ser tão grave quanto o dito psicótico. Sinceramente,
não tenho conhecimento sobre as características que possam
diferenciar um surto esquizofrênico de um surto psicótico. Não sei
até que ponto o que a minha amiga disse em suas redes sociais é
fidedigno à realidade e o tanto que pode ser exagero melodramático
mas, pelo menos pra mim, qualquer aproximação com o risco de um
surto dispara uma avalanche de lembranças e emoções sensivelmente
estomacais. Qualquer possibilidade de rumar para uma situação
daquela novamente, por menor que seja, ativa em mim todos os alarmes
possíveis.
O
dia em que surtei foi o pior dia da minha vida. Eu vinha, já havia
alguns anos, lidando com uma quantidade de problemas e desfechos
muito mais pesados do que eu julgava ser capaz de suportar. A vida
pessoal, financeira e profissional eram torturantes na maior parte do
tempo. Eu experimentava pressão familiar em alto grau para que
ganhasse mais dinheiro e mudasse meu jeito de ser, coisa que todas as
famílias, creio, fazem com seus jovens. O que não reduz o tamanho
do problema, já que de forma alguma o fato de todas, ou quase todas,
as famílias fazerem algo torna correta a prática. Na vida
financeira eu estava atado a dívidas que comiam quase todos os
rendimentos mensais, rendimentos esses fruto de um trabalho que me
destruía física e psicologicamente. Aliás, muito provavelmente
tenha sido o meu trabalho o principal catalisador para tudo o que
aconteceu.
Me
formei em Ciência Política, e, desde antes da conclusão do curso
já trabalhava com politicagens. Só a descrição da minha profissão
já daria um grande texto explicativo assustadoramente explícito.
Mas, para evitar maiores delongas, me restringirei a dizer que o
trabalho consiste em algo onde aquilo que acontece nas teorias de
conspiração acontece de verdade. Participar e me proteger de
conspirações é basicamente o conhecimento básico da função a
desempenhar. Isso associado ao mau caratismo, à inveja e à soberba
da maioria das pessoas com quem tinha de lidar diariamente, durante
anos, provocou diversos ferimentos graves no meu psicológico. A
política, e, por relação, o poder atraem o que existe de pior
entre as pessoas. Todo tipo de psicopata, canalha, arrogante,
mentiroso e oportunista encontra um lugar confortável no meio
político. Eu chamava meu ambiente de trabalho de “manicômio” e
“masmorra das vaidades”, como forma de tentar nomear o que eu
via. Era constantemente vítima de injustiças e/ou testemunha de
algum evento amargamente injusto contra alguém. A burrice e a falta
de caráter sendo premiada na mesma proporção que a honestidade e a
bondade eram ridicularizadas. Uma convivência diária com pessoas
absolutamente asquerosas, cruéis e movidas por inveja, com
raríssimas exceções. Aliás, exceções essas que enfrentavam um
sofrimento certamente semelhante ao meu. Preso à dívidas e a
expectativa familiar de um futuro digno, os dias pareciam uma pena,
um castigo sem perspectiva de fim. Minha vida era suportar pressão
enquanto era torturado psicologicamente em todos os aspectos
possíveis. Não era de se estranhar que tivesse um comportamento
depressivo, que pensasse na morte como um alívio, que tivesse sérias
dificuldades para dormir, que abusasse de álcool. Uma vida
miserável, de fato. Mas, como diz a regra de Murphy, nada é tão
ruim que não possa piorar.
O
cenário externo não era lá dos melhores, mas o problema mais grave
era interno. Já faziam anos que enfrentava um quadro depressivo, com
algumas tentativas frustradas de tratamento e muitas escolhas
erradas. De fato, abandonar o tratamento talvez tenha sido uma das
escolhas mais estúpidas que fiz. Dentro da minha cabeça o estado
das coisas era terrível. Os pensamentos eram acelerados,
desordenados, um caos que parecia uma sequência de explosões. As
imagens se formavam com grande velocidade, as emoções eram
totalmente bagunçadas, sentia ondas de sensações misturadas e
exageradas durante todo o dia, acompanhadas de imagens mentais que
simulavam possibilidades do que poderia acontecer comigo e
relembravam situações na maioria desagradáveis. Como uma TV onde
passam predominantemente programações perturbadoras, mudando de
canal em altíssima velocidade. Aliás a alegoria da televisão é
propícia devido a outro fato, como pano de fundo das imagens e
sensações havia uma coisa que eu chamo de “ruído”. Era como se
minha mente emitisse uma certa frequência, parecido com aquele
barulho que os aparelhos televisores antigos faziam quando estavam
ligados mas não sintonizados em nenhum canal. Não falo sobre o
chiado, mas um som bem sutil que saía das velhas TVs de tubo
simplesmente por estarem ligadas, um zumbido baixo e constante. Eu
sentia e ouvia esse ruído o dia inteiro, às vezes quando me
concentrava nele podia percebê-lo com mais clareza, ao ponto da
mente formar imagens de milhões de insetos andando uns sobre os
outros. Mas, no geral, enquanto estava acordado eu experimentava as
ondas de atividade mental todas tendo como pano de fundo, esse ruído.
E tudo ficava ainda pior na hora de dormir. Desde criança sofro com
distúrbios do sono, insônia, episódios de terror noturno, apnéia
e paralisia do sono, síndrome das pernas inquietas... Um kit
bastante completo de empecilhos para o descanso. Isso somado a ondas
e mais ondas de pensamentos e sensações totalmente fora de
controle, ideias auto destrutivas, paranoia, medo, angústia,
preocupação. Eu simplesmente não conseguia descansar, desligar das
situações de cobrança e estresse do dia a dia. E dentro da minha
cabeça, tudo reverberava em looping, sendo seguidamente interrompido
por estímulos externos e internos.
Ao
longo dos anos os problemas e motivos para sentir frustração
aumentavam e se acumulavam, e eu achava formas particulares de lidar
com a situação. Quando algo me dava prazer, geralmente cometia com
aquilo muitos excessos. Tinha uma sede constante e crescente por
alívio. Tentava controlar a mente através de experiências
religiosas, místicas, meditação, arte. Desenhava nas paredes do
meu quarto, pintava telas, escrevia textos de desabafo. E assim
levava a vida, entre os tormentos do lado de fora e a sala de
torturas do lado de dentro da mente. Achando meios de seguir em
frente lidando com cada vez mais e mais infortúnios. Pode parecer
uma descrição exagerada, mas não é. A capacidade humana de
suportar e resistir é verdadeiramente impressionante. É possível
se acostumar com condições absolutamente insuportáveis para os
conceitos de normalidade. A resiliência, por vezes, parece infinita,
embora não seja. Existe um limite para o que pode ser tolerado, e
infelizmente eu encontrei o meu. Como descreverei logo adiante.
Quando
estava já no que acredito ser o auge do sofrimento rotineiro,
comecei a buscar formas mais extremas para lidar com o que sentia.
Queria algo com efeito prático, alívio imediato. Foi quando comecei
com os experimentos químicos. Descobri e fiz uso de diversas
medicações compradas de forma irregular, fruto de especulação e
avaliações equivocadas dos efeitos. Calmantes, relaxantes
musculares, analgésicos, remédios com efeitos colaterais psico
ativos. Tudo regado a muito álcool. Cheguei a fazer uso de uma
substância apelidada de “droga dos músicos de orquestra”, o
cloridrato de propanolol, que, pelo que diziam nos fóruns era uma
substância desenvolvida para pessoas que não podiam se expor a
emoções fortes e agia reduzindo a atividade emocional. Os músicos
tomavam super doses deste medicamento para evitar ficarem nervosos
nas apresentações e isso atrapalhar o seu desempenho. Comprei
algumas cartelas dos comprimidos e passei a buscar a dose ideal
através da tentativa e erro, não deu certo. O ruído continuava, as
ondas de pensamentos continuavam, e as emoções não sumiam, só
ficavam ainda mais confusas. Foi quando decidi extrapolar.
Após
algumas pesquisas na internet, conversas com amigos entendidos e umas
experiências empíricas, concluí que o uso periódico de maconha
poderia me ajudar a enfrentar as situações tortuosas que
configuravam minha rotina. Usando a droga, que quase todos diziam ser
segura, como um calmante para alguém que vive nervoso. Essa foi,
talvez, a escolha mais estúpida que já fiz na vida toda.
Passei
a usar a erva como bengala toda vez que sentia que a situação
precisava de uma válvula de escape. A maconha tem um efeito
psicodélico, altera as percepções, cria sensações e imagens
mentais que parecem experiências místicas, simulam interações com
forças da natureza que parecem, por vezes, verdadeiras viagens
cósmicas. Sinestesia, hipersensibilidade dos sentidos, analgesia,
parecia tudo muito espiritual, muito etéreo. E nem sempre eram
sensações positivas, frequentemente o processo era substancialmente
angustiante e assustador. O pico do efeito se dava poucos minutos
após aspirar a fumaça e a “viagem” toda levava cerca de uma
hora, as vezes um pouco mais noutras um pouco menos. Ao final,
restava uma sensação de relaxamento e calma muito agradáveis. Como
uma paz interna silenciosa e confortável após uma tempestade. Essa
sensação de paz me trazia um alívio indescritível em relação às
ansiedades e frustrações. Era como jogar água fria sobre a pele em
chamas. Minha mente se acalmava, o ruído sumia, os problemas
pareciam menores e ocupavam menos espaço na mente. As coisas ruins,
os tormentos, os pensamentos negativos continuavam lá, mas pareciam
bem menos importantes. Havia silêncio. E era uma sensação
relativamente duradoura, permanecia por três, quatro dias. Às vezes
levava uma semana para o ruído voltar. Parecia que tinha finalmente
encontrado a solução que tanto busquei. E por causa dos depoimentos
de usuários de longa data, que afirmavam levarem suas vidas
normalmente com a maconha como complemento, acreditei que o alívio
tinha chegado para ficar. Acreditei ter encontrado uma solução como
a que esperava, direta e eficiente para a minha condição. A prótese
que supria minha deficiência. Não podia estar mais enganado.
Como
muitos sabem, um dos efeitos do uso de substâncias psico ativas é o
aumento da resistência aos efeitos, exigindo doses cada vez maiores
e com maior frequência para obter o mesmo resultado. Quer dizer,
chamar de mesmo resultado é exagero. Os efeitos das primeiras vezes
nunca mais se repetem com a mesma intensidade, no máximo se consegue
uma versão próxima do que foi. Embora a esperança de repetir a
experiência seja permanente, ela é infundada. E isso leva a
progressivamente a aumentar o uso, tanto na quantidade de substância
a ser consumida quanto na frequência com que deve ser usada. Somado
a isso, que acredito ser de conhecimento até mesmo do senso comum,
existe uma outra contraindicação no uso de maconha que nunca tinha
visto ninguém falar: O uso periódico reduz a importância que o
usuário dá para tudo que acontece com ele. Conforme o tempo passa,
eu me tornava cada vez menos preocupado com tudo o que me acontecia.
O que devia irritar já não irritava, o que devia entristecer não
entristecia. Uma sensação de neutralidade crescente se formava e
aos poucos tomava conta da minha personalidade. Isso pode parecer uma
vantagem diante da vida que eu levava, mas de fato não é. É
preciso lidar com os problemas, ignorá-los não faz com que
desapareçam. Não se importar pode parecer positivo quando se tem
que lidar com canalhas no dia a dia mas, começa a ser um problema
quando a memória começa a falhar e isso não vira alvo de
preocupação. Ao longo do tempo, eu supri minhas necessidades
emocionais com o uso da erva, e me tornei um usuário crescentemente
resistente aos efeitos. Se por um lado eu entrava em embates cada vez
mais audaciosos no trabalho sem dar a mínima para as consequências,
por outro me tornara incapaz de escrever uma resenha sobre um filme
que acabara de assistir. Ao passo que a droga me possibilitava
experiências sensoriais intensas, elas não formavam lembranças. Eu
ficava dia após dia cada vez menos consciente do mundo ao meu redor
e definitivamente não me importava com isso. Isso afetou minhas
relações, me levando a escolher a companhia de pessoas de má
índole ou que simplesmente não nutriam por mim qualquer respeito ou
apreço. Não apenas no trabalho, mas também na vida pessoal. Estava
cada vez mais cercado de pessoas más, peçonhentas. Me expunha a
situações perigosas, frequentava ambientes perigosos, tinhas ideias
erradas sobre como lidar com os problemas usando meios moralmente
condenáveis. Tudo sem me importar com nada.
Com
cada vez mais frequência, diante dos graves problemas com que tinha
de lidar, eu consumia mais e mais erva. Os problemas eram cada vez
mais complexos, mas minha forma de lidar era sempre a mesma: me
chapar. Aquilo havia se tornado um grande estilo de vida, muito mais
do que o desejo inicial de usar apenas como uma medicação. Como
remédio o efeito foi realmente o esperado, eu passava pelas
situações com uma tranquilidade sobrenatural, parecia inabalável.
Tomava decisões difíceis sem pestanejar, e relaxava como nunca
quando descansava. Digo quando descansava porque a insônia havia
voltado, e para tentar remediar eu fumava mais ainda. Era comum
dormir uma ou duas horas por noite. Passava as madrugadas drogado
ouvindo música ou assistindo vídeos aleatórios na internet. Apesar
da falta de sono, eu me sentia forte diante dos desafios. Nada era
intenso o suficiente para me aborrecer. Parecia ter encontrado um
segredo do mundo, uma solução mágica para lidar com o sofrimento
diário de uma vida frustrada. Mas o destino não tardou em traduzir
meu erro.
Minha
relação com a maconha durou três anos, entre pausas e usos
exagerados. Quando, num belo dia, a própria forma despreocupada com
que vinha levando a vida me conduziu a um local onde fui cercado de
hostilidade por pessoas que não conhecia. Vou omitir maiores
detalhes do que ocorreu para não dar qualquer destaque as miseráveis
almas com que eu compartilhava espaço naquele dia. Mas deixo claro
que as atitudes deles para comigo foi o que desencadeou a série de
eventos que culminou com o que se seguiu. Etava na casa de uma
pessoa que julgava erroneamente ser minha amiga, com outros
convidados, quando por algum motivo que desconheço alguns presentes
passaram a ser hostis comigo, provocarem e ofenderem sem razão. Eu
estava sob efeito de álcool e maconha e tudo fica ampliado quando se
está bêbado e chapado. Ser mal tratado por estranhos foi como
acionar o detonador de uma bomba que a muito estava preparada para
explodir. Todo estresse do trabalho e da vida em geral, todas as
frustrações, todos os jogos no qual eu estava metido, todas as
madrugadas acordado, toda a maquiagem que a droga fez na situação
verdadeira dos meus nervos, tudo explodiu de uma só vez. A realidade
se tornou algo terrível demais para trazer aqui em palavras e eu
tive o tal surto. As lembranças daquele dia ocupam na minha mente um
espaço muito maior do que eu gostaria que ocupassem. Momentos de
terror que espero tenham sido um episódio único nessa vida e nunca
mais cheguem sequer próximo de se repetirem. Cercado de ações
naturalmente assustadoras e reais, aquelas pessoas estavam mesmo
agindo daquele jeito, tinham os seus efeitos ampliados
exponencialmente na minha percepção, me levando ao pânico
completo. Foi ali que aprendi ser possível “quebrar” uma pessoa,
como se fosse vidro. Não importa a resistência que ofereça, com
pressão suficiente a estrutura vai certamente se partir. E quando
quebra, uma pessoa não consegue usar seus sentidos direito, nem seus
pensamentos, nem nenhuma de suas faculdades. É como uma pane geral
no sistema central. Como um computador infestado de vírus e
softwares maliciosos que opera com a plenitude de seu potencial,
porém absolutamente desordenado, com funções corrompidas. Eu
lembro de tudo o que aconteceu, lembro do que senti e do que pensei
na hora, das conclusões absurdas que tive. Tudo o que as pessoas que
estavam lá realmente fizeram em detrimento ao que eu interpretava
estar acontecendo. A experiência mais apavorante de toda minha vida.
A própria realidade, o mundo real, vira um pesadelo que parece não
ter fim e a mente sugere soluções gradualmente mais e mais
drásticas para enfrentar as situações que os delírios fazem
parecer absolutamente reais. A experiência foi intensa o suficiente
para mudar minha vida. Vida que, diga-se de passagem, por pouco não
perdi.
Hoje
meu corpo, assim como minha alma, carregam cicatrizes do que vivi
naquele dia. Foi como nascer novamente. Surtar é uma experiência
indescritível, intraduzível em palavras. De repente a própria
realidade é substituída por outra, na qual as coisas que fazem
sentido são terrivelmente distorcidas. Eu tinha uma certeza absoluta
do que havia concluído, não tinha espaço para qualquer dúvida.
Estava incrivelmente equivocado no que considerava concreto, mas não
tinha qualquer pensamento que levasse a crer o contrário. Por mais
absurda que fosse a situação que eu acreditava estar inserido,
naquele momento era a mais pura realidade. E eu precisava morrer.
Minha morte era a única solução possível, a única coisa a se
fazer. O único desfecho honroso e útil, a única forma de combater
o mal. Por isso perfurei diversas vezes o meu pescoço e o pulso
esquerdo, usando a ponta de uma faca de mesa. As perfurações,
apesar de graves, miraculosamente não atingiram nenhuma artéria.
Mas foram profundas o suficiente para me fazer sangrar quase até não
haver possibilidade de sobreviver. Foram umas duas ou três horas
sangrando em parar, encharcando o colchão da cama onde estava. Estar
encharcado do próprio sangue é inesquecível. A dor, o fedor, a
viscosidade grudenta, o rio quente que brota da ferida e escorre pela
pele, o som das gotas de sangue pingando. Os pensamentos cooperando
para que tudo ocorresse daquela forma. A sensação do corpo estar
pouco a pouco se tornando apenas carne fria acompanhado da convicção
de estar fazendo a coisa certa.
Fui
hospitalizado, levado para a emergência. Passei um pequeno pesadelo
no hospital por conta de umas mentiras ao meu respeito que a pessoa
que me levou até lá contou pra tentar se safar da responsabilidade
do que ajudou a fazer. Mas no final das contas sobrevivi, e, após um
período de reabilitação de mais ou menos um mês, no qual fiquei
internado numa clínica boa e digna, voltei para casa. Estava
traumatizado ao ponto de ver inimigos me perseguindo em todos os
cantos. Achava que meu celular estava grampeado por inimigos que me
perseguiriam até a morte. Se via um técnico mexendo no poste de luz
em frente de casa já imaginava que eram meus inimigos instalando
escutas. Não conseguia ver qualquer cena de violência na TV que
ficava totalmente perturbado. Estava totalmente paranóico e
desesperado. Parecia que tinha ficado louco de vez e que nunca mais
teria paz. Depois de sair da clínica fiquei ainda dois meses
afastado do trabalho, delirando em casa. Mas foi aí que iniciei
novamente o tratamento para meus problemas psicológicos. Frequentava
psiquiatra e psicóloga semanalmente, me abstinha de qualquer bebida
alcóolica e buscava encontrar junto com o médico a dose certa do
remédio certo. Com o pausa forçada na rotina e por conta de um
tratamento iniciado ainda quando afastado, aos poucos os efeitos
colaterais do ocorrido foram ficando mais suportáveis. Quando uma
pessoa quebra como eu quebrei, é preciso reconstruir certas
estruturas para poder seguir em frente. Com muito cuidado e empenho,
cuidei de aproveitar a oportunidade de tratamento que me foi
oferecida ao máximo, seguindo à risca todas as orientações e não
cedendo a pensamentos de desistência e desânimo. Fazia o certo, o
que devia ser feito. E não o que me sentia compelido a fazer. Foi um
tempo de recuperação muito intenso no qual praticamente tive outro
nascimento. Eu reconhecia que estava desequilibrado, podia notar a
loucura em mim, mas desta vez queria fazer a boa escolha. Queria
combater o que tinha de errado comigo. Queria fazer a coisa certa.
Foram
meses de tratamento até que pudesse realmente me acalmar e aprender
a lidar com as memórias do que tinha acontecido. Aos poucos a
paranóia foi diminuindo, o medo generalizado foi sumindo e fui
gradualmente voltando ao normal. Depois de um tempo pude voltar ao
trabalho onde retomei as rotinas e obrigações e passei a lidar de
forma sóbria com tudo que acontecia. Reduzi o contato com as pessoas
que me faziam mal o máximo que pude e passei a trabalhar minha mente
para não levar os problemas do trabalho para casa. Deixava para
resolver no dia seguinte o que podia e combatia os pensamentos de
preocupação. Fazia psicoterapia duas a três vezes na semana,
tomava religiosamente os remédios, buscava dormir o mais cedo
possível, cuidava de mim. Aceitei a ajuda das pessoas a minha volta
que se preocupavam comigo, tentei me redimir por ter sido um idiota e
ter feito tantas coisas erradas. Encarei como uma chance de fazer um
recomeço. Uma oportunidade de abandonar o erro. E segui melhorando
aos poucos.
Hoje
posso dizer que superei razoavelmente bem tudo o que aconteceu e levo
uma vida muito mais equilibrada e saudável. Me tornei outra pessoa.
Faço uso contínuo de medicamentos prescritos pelo médico e faço
tratamento psicológico uma ou duas vezes por semana com a mesma
psicóloga que me ajudou desde que tive a crise. Os problemas
continuam, os infortúnios continuam, a super atividade mental
continua. Mas mudei a forma de enfrentá-los. Os remédios ajudam com
os problemas do sono e finalmente consigo dormir com certa
normalidade. O ruído também desapareceu em função da medicação
certa. Desenvolvi aversão a qualquer sensação de embriaguez, me
abstenho de ingerir qualquer substância que mexa na percepção. Sou
um viciado em lucidez e enfrento as situações com a cara limpa e a
coragem. Nunca fui ateu, mas me tornei sensivelmente mais religioso,
na mesma proporção em que me tornei mais reservado. Seleciono
cuidadosamente as pessoas com quem me relaciono e jamais me ponho em
situações de risco desnecessário. Enquanto escrevo esse texto já
me distancio quatro anos daquele dia fatídico do surto. Fui
promovido, derrotei diversos canalhas que desapareceram da minha
vista no trabalho. Voltei a estudar e ocupo minha mente com tarefas e
leitura, muito mais do que com qualquer outra coisa.
Julgo
ser hoje uma versão de mim mesmo muito melhor do que fui no passado
e, dessa vez, com a perspectiva de melhorar ainda mais com o passar
do tempo e das histórias. E tenho um cuidado extremo comigo mesmo,
para me manter o mais longe possível de qualquer fronteira com a
insanidade ou surtos de qualquer natureza. Fico atento aos desânimos
e preguiças que surgem, ao mau humor, às insônias e aos medos e
tristezas súbitas. Tudo que me parece desviar do caminho. Não
negligencio mais nada em mim mesmo e busco lidar da melhor forma
possível. Busco estar bem, tão bem quanto possível, o máximo de
tempo que consigo. E não faço mais das frustrações o cenário
predominante da minha vida. O que de ruim acontece, busco aceitar e
ver da forma menos sofrida, tento achar meios para entender o que
acontece e busco reagir positivamente. Muito, muito longe de ser uma
vida perfeita, mas tento fazer as coisas certas. Tento me cuidar e
manter a cabeça limpa de qualquer coisa que possa me fazer mal,
sejam pensamentos tóxicos ou substâncias tóxicas.
Engraçado
como tanta coisa pode caber num relâmpago de pensamento como o que
eu tive lendo a postagem da minha amiga. Gostaria de fazer ela saber
que o receio dela em surtar é bem mais real do que ela provavelmente
pensa. Gostaria que todos pudessem saber disso. Humanos quebram sobre
pressão, uns precisam de mais pressão, outros de menos. Mas todos
quebram. E é prudente cuidar para que isso não aconteça. Saber
identificar e medir os indícios do quanto o risco de surtar está
próximo e lidar com eles de forma a se afastar da fronteira do
surto. A vida é cheia de problemas e coisas desagradáveis. As
perspectivas de futuro quase nunca são as ideais e quase todos os
caminhos são tortuosos. É preciso encontrar sua própria forma de
lidar com o sofrimento de forma a não deixar ele dominar sua mente,
sua vida. É preciso cuidado para não quebrar. Mas, se quebrar, é
preciso ter força para se reconstruir. Aceitar as ajudas que surjam
e reconhecer a fraqueza diante da situação. Querer melhorar e tomar
atitudes para isso. Fazer o que é certo e esperar que o tempo passe
e tudo se ajeite. Foi assim que aconteceu pra mim e assim me tornei a
pessoa que sou hoje.
Nenhum comentário:
Postar um comentário