A
primeira vez que eu senti que havia algo errado comigo foi na
adolescência. Antes disso não me lembro de notar nada que chamasse
a atenção. Fui uma criança saudável, tive uma infância boa na
qual não me faltou absolutamente nada. Passei os primeiros anos de
vida de forma bastante normal, embora sempre tenha manifestado uma
personalidade um pouco excêntrica e enfrentado bullying na escola.
Por ter desde sempre um certo gosto pela solidão, passei bastante
tempo me entretendo com atividades solitárias como leitura,
videogames, assistir filmes ou ouvir música. Conforme fui crescendo
esse hábito se consolidou e me tornei um adolescente um tanto
reservado, que gostava de ficar sozinho com suas coisas. Passava os
dias entre compromissos escolares e os devaneios vindos da TV, rádio,
livros e revistas que consumia com voracidade. Por isso, ninguém
nunca notaria uma mudança de motivação para o meu comportamento
solitário. Com poucas, porém boas, amizades, notei por volta dos 15
anos que nutria um sentimento confuso no peito. Um vazio, uma certa
tristeza sem motivo claro. Uma angústia permanente cuja intensidade
variava de acordo com o dia. E por isso passei a me isolar ainda mais
do mundo, o que não foi percebido por ninguém, já que todos que me
conheciam estavam acostumados a me ver curtindo momentos sozinho. Mas
aquilo era diferente, era ruim, bem ruim, me trazia sofrimento. Já
não sentia mais alegria nas coisas que fazia.
Graças
aos amigos, encontrei na música uma poderosa válvula de escape para
esse sentimento. Descobri estilos musicais como o metal extremo e
inúmeras variações de gothic, o que me proporcionou uma grande
jornada por sensações muito intensas. Ao ponto de imergir na
estética e assumir uma aparência relacionada à essa cultura.
Minhas roupas passavam a traduzir minha percepção do mundo, sempre
de preto e usando adereços agressivos. Cabelo comprido, coturnos,
camisetas de banda, braceletes pontudos, caveiras… Vesti uma
carapaça e tinha me tornado um típico metaleiro.
Lembro
de ter procurado ajuda médica uma vez nessa época, no posto de
saúde da cidade pequena em que morava. Uma médica psiquiatra mau
humorada que ficava digitando no computador enquanto eu falava sobre
a sensação constante de que algo ruim ia acontecer, sobre não
conseguir dormir a noite e sobre a tristeza sem motivo que as vezes
me derrubava na cama por dias. Falei tudo o que sentia e ao final
ouvi que aquele serviço que ela prestava não era para esse tipo de
caso. Que estava ali para atender casos graves em que as pessoas
estejam se colocando em risco ou aos seus familiares. E recomendou
que eu procurasse uma clínica particular para fazer psicoterapia.
Como não havia opções na cidade e não tinha comentado sobre a
iniciativa de procurar um psiquiatra com meus pais, resolvi esquecer
o assunto.
Foram
anos naquela situação, sempre com permanente sensação de que
havia algo errado acontecendo no meu interior. Então, por
imaturidade, resolvi encher a vida com tudo que pudesse me ajudar a
extravasar. Desde os já referidos estilos musicais, prática de
artes marciais até incontáveis excessos cometidos com comida e
consumo de álcool. Foi nessa época que fiz os primeiros ferimentos
intencionais em mim mesmo. Cicatrizes de arranhões e queimaduras de
cigarro começaram a povoar minha pele em partes onde as roupas
cobriam. Meu comportamento se tornou gradualmente mais e mais
desajustado, inconsequente ao ponto de pôr minha vida em risco
diversas vezes. Posso dizer que vivi o mais intensa e
irresponsavelmente que pude até, quando, por volta dos 22 anos,
comecei a trilhar um caminho substancialmente ainda mais perigoso.
Além dos excessos de sempre, havia me envolvido com uso de drogas
como remédios, chás alucinógenos e cocaína. Me julgava ser um
“surfista das ondas cerebrais”, deslizando entre as sensações
causadas pelas substâncias, explorando os estados alterados de
consciência. Isso somado ao interesse que nutria desde a infância
por ocultismo e magia me levaram a uma espiral negativa de práticas
cada vez mais degradantes. Me tornei conhecido em certos meios que
frequentava por episódios de uso excessivo de psicoativos e
violência, brigava na rua e me drogava como se fosse um estilo de
vida. Através do estudo e prática de rituais ocultistas acabei me
vinculando a certos grupos organizados e cheguei a ter seguidores,
garotos e garotas que gostavam dessas coisas e viam em mim uma
liderança. Com o passar do tempo me tornei mais e mais popular pelas
coisas que me dedicava a fazer, enquanto afundava cada vez mais em
sombras. Os ferimentos auto infligidos pioravam em gravidade a cada
episódio, tendo evoluído de arranhões para profundos cortes feitos
com estiletes e queimaduras com metal quente. Minha vida havia se
tornado um buraco onde eu cumpria horário na empresa em que
trabalhava, no qual meus tios eram proprietários, e gastava o resto
do tempo entre atividades condenáveis e com péssima motivação.
Entrei e saí de diversas situações de risco enquanto meu corpo se
deteriorava pelos excessos e pelo uso frequente de substâncias
tóxicas. O consumo de álcool era diário, não dormia sóbrio
praticamente nunca. Drogas, fast food, violência, ocultismo,
automutilação, lugares e ocasiões perigosas, más companhias…
não demorou até que ocorresse a primeira tentativa de suicídio.
Um
dia, sentado sozinho e de cueca no sofá do apartamento onde morava,
muito bêbado, estiquei as pernas sobre uma cadeira e comecei a
cortar minhas coxas com muita força, fazendo cortes muito profundos
que escorriam em abundância, criando uma poça no chão. Foram cerca
de dez ou doze cortes nas duas pernas, feitos com um estilete muito
afiado. O sangue corria em rios grossos e quentes pela pele e se
acumulava do chão de tacos, soltando um forte cheiro característico.
Não tinha intenção de me matar, apenas fiz o que senti vontade
naquele momento e fiquei observando a obra em silêncio. Em função
da profundidade dos cortes, o sangramento não reduzia. E eu, em um
estado alterado pelo álcool, apenas apreciava o momento. Depois de
uns vinte minutos peguei no sono e dormi naquela posição, sentindo
o calor dos ferimentos e do sangue na pele. Acordei quatro horas
depois e ainda estava sangrando. Minha mente estava um pouco mais
clara e rapidamente levantei. A poça no chão estava enorme, e
coagulada, parecendo um pudim vermelho. Andei até o banheiro e
liguei o chuveiro. Enrolei uma toalha de rosto e pus na boca. Com
muita força de vontade esfreguei os cortes com sabonete e suportei a
dor urrando enquanto mordia o tecido fofo da toalha. Senti a vista
escurecer e as forças faltarem quando caí derrubando a porta do
box, que por sorte não era de vidro. Fiquei deitado no chão por
alguns minutos e comecei a beber a água morna do chuveiro. Quando a
tontura passou, levantei com alguma dificuldade e tentei pôr a porta
do box no lugar. Caí novamente e fiquei mais um tempo no chão,
descansando. Quando levantei me mexi devagar e deixei a água
escorrer sobre os cortes das pernas. Desliguei o chuveiro e saí.
Enfaixei as pernas com as ataduras que usava nas aulas de boxe
tailandês, bem apertado, e o sangramento parou. Me vesti e fiquei
sentado, trêmulo, esperando dar a hora de ir para o trabalho. Comi
alguma coisa e saí. Tive que ajustar as faixas algumas vezes durante
o dia, a calça preta ficou manchada pelo sangue que transpassou em
alguns pontos. Ao final do dia voltei para casa e limpei toda a
sujeira que estava seca deixou uma mancha enorme no sofá.
Mesmo
que sem a intenção clara de me matar, hoje entendo que aquele
episódio foi minha primeira tentativa concreta de suicídio. Embora
estivesse levando uma vida que era visivelmente auto destrutiva e por
diversas vezes tenha escapado de morrer em situações que eu mesmo
criei, considero chamar de tentativa de suicídio somente as vezes em
que a causa da morte fosse diretamente uma ação minha, e não as
circunstâncias em que me coloquei.
Depois
dos cortes nas coxas, que demoraram bastante para cicatrizar, comecei
a julgar minha vida um erro e tentar em vão achar uma saída para a
angústia que eu sentia. Minha tia notou que meu desempenho no
trabalho estava indo de mal a pior e tentou me ajudar. Pagou algumas
consultas com um psiquiatra conhecido dela que me receitou
antipsicóticos e antidepressivos. Por questões que até hoje não
entendo, ele entendeu meu fascínio por ocultismo e espiritismo como
algum tipo de alucinação e me receitou remédios fortes, usados
para quem vê coisas que não existem. Um equívoco. Fiz o tratamento
por um tempo e acabei sendo afastado do trabalho. Então minha vida
mudou drasticamente. Minha família não sabia da tentativa de
suicídio nem do uso de drogas, mas percebeu que eu não ia bem
sozinho. Foi quando voltei a morar com minha mãe e passei a receber
amparo familiar. Mudei de cidade, me afastei de todos que
compartilhavam aquele mundo autodestrutivo comigo, deixei de lado o
ocultismo e parei com as drogas. Me isolei de todos que não fossem
minha família ou amigos muito próximos. Fiquei em torno de um ano e
pouco recebendo auxílio estatal para tratamento médico, mas o
quadro em que eu estava não evoluía. Embora tivesse abandonado a
vida perigosa de violência, rituais mágicos e drogas ilícitas,
afastado do trabalho eu passava o dia todo em casa medicado, fumando
cigarros e esperando o tempo passar. Minha mente parecia uma
tempestade furiosa de pensamentos e eu não via qualquer perspectiva
de futuro. Com um currículo profissional pobre, pouca experiência e
nenhuma possibilidade de estudar ou crescer, eu via um futuro cada
vez pior se formar na minha frente. Minha família nunca foi rica,
sempre foi preciso muito sacrifício para ter o necessário. E eu,
aos vinte e poucos anos, não via qualquer possibilidade de me
sustentar ou evoluir de qualquer forma que fosse. Desempregado,
doente, sem perspectiva, com uma visão pessimista e catastrófica da
vida. Eu estava no fundo do poço e sentia que as coisas só iriam
piorar com o passar do tempo. Naquele momento, o ódio que eu sentia
do mundo havia dado lugar a uma densa tristeza. Eu não via
significado em continuar vivendo.
Mas
tinha algo bom naquele inferno, que eram as pessoas que me cercavam e
se preocupavam comigo. Que insistiam para eu reagir e me davam ideias
de como melhorar. Torciam por mim. Foi nesse momento tenebroso mas em
que pude contar com pessoas especiais que começou a jornada que
contarei aos poucos em postagens futuras. A partir do momento em que
tudo na minha vida passou a ser sobre buscar melhorar e ter uma vida
decente, com o apoio da minha família e de alguns poucos amigos que
nunca desistiram de mim. Como primeira impressão, deixo essa breve
introdução da forma como conto a minha história para que, talvez,
sirva para ajudar alguém que se identifique. Hoje tenho 38 anos
recém feitos e superei boa parte dos desafios que me surgiram. Vivo
uma vida muito mais equilibrada e com fundamento. Lido muito melhor
com o vazio que existe dentro de mim, e gostaria de contar como tudo
aconteceu além de compartilhar como tem sido experimentar a vida sob
uma ótica mais madura e sã. Daqui para frente, as aventuras se tornam ainda mais íntimas. E deixo aqui o convite para que você
participe desta viagem.
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