Hoje
em dia se faz um grande estardalhaço sobre o que chamam de bullying.
No meu ponto de vista, como é de praxe na sociedade atual,
banalizando um problema real e bastante sério. Qualquer brincadeira
ou comentário mais ácido é chamado de bullying, usando o termo
para traduzir bobagens e frescuras de pessoas fracas e mimadas ao
invés dos horrores que deveria.
Lembro
que a primeira vez que fui agredido fisicamente sem motivo foi na
pré-escola. Devia ter por volta de quatro anos. Um colega maior do
que eu implicou comigo sem nenhuma razão e aproveitava todos os
momentos em que a professora não estava nos observando para me
bater. Não sei qual foi o destino daquele menino, mas somente tenho
memória dele naquele ano. Quando ingressei na primeira série do
ensino fundamental já não o vi mais. Dali em diante comecei de fato
minha jornada na vida escolar, uma fase longa da qual não sinto
nenhuma saudade.
Como
já referi algumas vezes, eu fui uma criança um pouco excêntrica.
Com uma curiosidade acima do normal e um gosto pessoal incomum. Tinha
um grande interesse em temas que passavam despercebidos pela atenção
das crianças da minha idade. Enquanto meus colegas se preocupavam
com novelas, futebol e programas de auditório, eu apreciava
documentários e programas educativos, antigas revistas de ciências,
enciclopédias que tinha em casa e me divertia com histórias de
terror e ficção científica. Estava sempre perdido nas conversas e
fazia um esforço hercúleo para tentar me incluir. Esforço esse que
não raro era retribuído com deboche e achincalhamentos por parte
dos colegas. Nos primeiros anos, até a quarta série, estudei em uma
escola para crianças onde sofri bastante com a exclusão. Não era
aceito em nenhum grupo e não fiz amizades. Passava como um fantasma
pela escola, sendo lembrado vez ou outra quando os colegas achavam
necessário se divertir às custas de alguém. Dessa época, lembro
apenas de nutrir admiração e carinho por uma professora que era
totalmente fora dos padrões, a “prô Lígia”, que tocava violão
em sala de aula e tratava com os alunos individualmente, dava atenção
a cada um sempre com muito cuidado, ouvindo e buscando ajudar. Fora
ela, não tenho outras referências de bons professores nessa fase.
Apesar
do imenso vazio que sentia por não pertencer a grupo nenhum, ser
alvo constante de piadas cruéis, do medo que sentia de alguns
colegas violentos mas que, de fato, na maioria nunca chegaram a me
fazer mal, e do tratamento injusto que recebi de algumas professoras
irresponsáveis (deboche sem sentido em tarefas de sala de aula;
proibição de ir ao banheiro por várias horas até várias
crianças, inclusive eu, sujarem as calças; insinuação de ser
homossexual que me rendeu um - já curado - comportamento homofóbico
na vida adulta; exposição ao ridículo por gostar de filmes de
terror…), com exceção do menino que me batia na pré escola, não
considero ter sido exposto ao que se chama verdadeiramente de
bullying nessa época. Acredito que com aquilo tudo apenas pude
sentir o quanto o mundo é um lugar complicado de se viver para quem
não se encaixa nos padrões. Mas a coisa mudou de grau quando
troquei de escola, ingressando na quinta série em um colégio que
contava com colegas adolescentes e alguns adultos. Foi lá que
conheci o terror que me motivou a compartilhar essas lembranças em
forma de texto.
A
escola em que estudei dos nove aos doze anos era uma das maiores da
cidade pequena onde eu morava. Reunia alunos de todos os bairros e,
por ser pública, era frequentada por diversos jovens que haviam
reprovado muitas vezes e, por isso, eram bem mais velhos do que a
média. Em maioria, as turmas eram formadas por moradores da
periferia. Jovens que em quase a totalidade enfrentavam dificuldades
financeiras e vinham de lares complicados, convivendo com toda sorte
de desgraça diariamente. Num cenário assim, não é difícil
entender porque a violência era tão comum naquele lugar. Os quatro
anos que passei lá foram um verdadeiro pesadelo que parecia não ter
fim. Foi como cumprir uma pena. Perdi a conta de quantos
espancamentos testemunhei e de quantas vezes tive medo de ser eu
mesmo o alvo de um espancamento. Os membros das gangues mais
violentas da cidade “estudavam” lá e sentiam um sádico prazer
em agredir e amedrontar a todos.
Mesmo
sendo cuidadoso e aproveitando bem as oportunidades, não escapei de
tudo. Apanhei gratuitamente inúmeras vezes e fui humilhado umas
outras tantas. Tive a sorte de vencer umas poucas brigas no recreio
e, por isso, ser deixado um pouco de lado pelos valentões. Mas não
imune ao meio. Muitas vezes me obriguei a fugir, literalmente
falando, tive que correr para não virar um saco de pancadas sem ter
feito absolutamente nada para provocar. Vi amigos ficarem com os
rostos deformados, com poças de sangue no chão depois de serem
surrados por dezenas de caras. Levei socos, cabeçadas, chutes e
empurrões enquanto andava para a sala e esperava pela hora de
começar as aulas no pátio. Fui roubado, acertado na têmpora por um
grampo disparado por um estilingue que quase me deixou cego, alvo de
brincadeiras humilhantes e ameaçado diariamente… Era um pesadelo
sem fim.
Lembro
bem de um dia, já na sétima série, em que uma professora veio
conversar comigo sobre uma situação. As salas de aula estavam sendo
alvo de furtos no horário do recreio e, por isso, a direção havia
decidido tomar uma atitude um tanto peculiar: Deixar um aluno
incumbido de trancar e abrir a porta da sala no horário do
intervalo. Foi uma bênção. Por obra do Eterno naquele dia eu
consegui chamar a atenção da professora em questão e ela decidiu
que quem ficaria com a chave seria eu. Que alívio indescritível! O
principal problema com a violência se dava sempre nas entradas e nas
saídas (no horário da saída, inclusive, era comum ocorrerem brigas
e espancamentos em grupo na rua, nos arredore da escola), no trajeto
a ser percorrido pelos corredores e escadas do portão até a sala de
aula, nas aulas de educação física e principalmente no inferno que
era a hora do recreio. Com a possibilidade de trancar a sala, eu
passei a não descer mais ao pátio. Os alunos eram proibidos de
ficar em outros lugares da escola, todos deveriam ficar no pátio e
quadras esportivas no horário do intervalo. Sempre havia um
funcionário andando e fiscalizando as dependências para ver se
alguém estava onde não devia e enxotando para o local determinado.
Mas, com a possibilidade de esperar todos saírem e me trancar dentro
da sala eu não descia mais para o pátio e, por alguns meses, tive o
alívio de não precisar passar pelo terror da hora do recreio.
Lembro até de, depois de um tempo, dar abrigo a um colega chamado
Cleber que havia sido espancado por uns vinte caras duas vezes no
mesmo ano e também tinha medo de ir para o recreio. Ficávamos
escondidos na sala, em silêncio, para os fiscais que andavam pelos
corredores não desconfiarem do nosso esconderijo. E essa é uma das
melhores lembranças que tenho daquela época, o período em que
achei um bom lugar para me esconder na hora do recreio. Enfim, nesse
período descobri o real significado da palavra bullying. Uma
condição que destrói os nervos de qualquer um pela constante
exposição ao medo. O que me faz ter muito pouca paciência hoje em
dia quando alguém diz estar sendo alvo de bullying por receber um
apelido ou por colocarem lixo na mochila. Isso é banalizar um
problema grave, é menosprezar o sofrimento de quem realmente passa
por situações de abuso. É, fundamentalmente, uma falta de
respeito.
O
mundo é um lugar de sofrimento, ninguém vive aqui sem sofrer. É
preciso ter isso em mente antes de sair nomeando as coisas baseado na
própria experiência. Aos olhos de cada um, o seu sofrimento é
sempre pior do que o do outros, e é um erro se deixar levar por essa
visão. Existe uma diferença entre o fato a que somos expostos e a
forma como sentimos o que acontece. E é preciso se esforçar para
ter a consciência da diferença entre os dois. Não é possível
controlar o que sentimos, mas isso não nos habilita a sermos
injustos e impor ao mundo a nossa visão dos fatos. Não é porque
você se sentiu mal em uma situação que automaticamente está
autorizado a dizer que foi alvo de uma injustiça. Um bandido preso
por roubo pode se sentir injustiçado pela vítima que o identificou,
mas isso não o faz ter razão. Alguém que leva uma chamada de
atenção por desconhecer regras de etiqueta e convívio pode achar
que foram injustos consigo mas, de fato, quem estava errado? Da mesma
forma, os sofrimentos que passamos devem ser avaliados de forma a
identificar os fatos com a maior proximidade da realidade possível.
Quanto do que passamos foi causado por alguma atitude errada nossa
mesmo? É preciso tentar realmente entender o que aconteceu sem se
deixar levar pelo que sentimos. Fazendo isso, é possível ter
certeza de que fomos vítimas de alguma situação injusta realmente
ou se estamos sendo exigentes demais para com nosso conforto, que não
tolera nem um pouquinho de sofrimento e já faz tudo ser um drama.
Como já foi dito, o mundo é um lugar de sofrimento. Viver é
sofrer. É desejar coisas que não se pode ter, é perder coisas
importantes e lidar com a falta. É estar à mercê das vontades de
outras pessoas que na esmagadora maioria não pensam em ninguém além
de si mesmas. O sofrimento, quando na medida, fortalece o espírito.
O quanto antes aceitarmos isso, melhor. A escola, assim como todos os
outros lugares que frequentamos ao longo da vida, está cheia do
egoísmo, da burrice e da ignorância humana. Estar lá e não ser
alvo de algum incômodo é que seria estranho. Uma dose de sofrimento
na infância é até necessário para que sejamos adultos fortes,
capazes de aguentar as doses muito maiores que virão com o passar do
tempo. Chamar esses desconfortos causados por crueldades infantis que
ocorrem em meio a vida escolar de bullying é o cúmulo da falta de
noção. É colocar os próprios problemas acima dos problemas de
todo mundo, até dos que sofrem injustiças verdadeiras. É egoísmo.
Arrogância.
Bullying
é uma tortura absurda que deixa marcas profundas pro resto da vida.
Uma exposição ao medo de forma totalmente descabida. É violência
gratuita e brutal. E isso, sim, deve ser avaliado por profissionais e
enfrentado como um problema real. As vítimas precisam de amparo e os
agressores precisam de punição que, no caso das escolas, se estenda
aos seus responsáveis. Não perdendo tempo com gente mimada que acha
que o apelido que recebeu é o fim do mundo, mas tratando dos jovens
que tem que lidar todo dia com filmes de terror em suas vidas por
culpa de psicopatas em idade escolar. Esse é um problema muito sério
que exige atitudes drásticas para ser enfrentado. E não perder
tempo com bobagens e frescuras de pessoas egoístas que se acham o
centro do universo.
Eu
fui alvo de bullying, de bullying verdadeiro e não de meros
tiradores de sarro. E isso me custou anos da vida, no qual fui tomado
por um ódio que jamais me levaria a bons caminhos. Uma revolta
contra tudo e todos que quase destruiu minha vida. Me tornei um
adolescente revoltado e um adulto problemático, muito em função do
que passei na escola. O ódio que eu sentia era tanto que chegou a se
voltar contra mim mesmo, ao ponto de adotar uma atitude totalmente
auto-destrutiva. Por várias vezes eu quase morri sem nem saber ao
certo no que estava me metendo e magoei muita gente injustamente.
Hoje
posso dizer que já superei boa parte dos traumas a que fui exposto e
lido relativamente bem com as lembranças do que foi meu período
escolar. Faço tratamento psicológico e psiquiátrico e busco ocupar
meu tempo com coisas úteis como trabalho e estudo. Tem dado certo.
Com o passar do tempo as coisas ficaram mais claras e entendi melhor
o que posso fazer em relação ao que me incomoda na vida e no mundo.
Aquele ódio todo aliviou e deu lugar a outros sentimentos menos
tóxicos. Minha vida ganhou gradativamente mais valor ao passo em que
eu me desligava do que me fazia mal. Me ater aos compromissos que
assumo, ter expectativas positivas para o futuro e agir em prol
disso, cuidar bem de mim mesmo, como cuidaria de um filho ou de um
irmão, são atitudes que aprendi a ter depois de tudo o que passei.
Pode parecer óbvio para alguns, mas para mim não era. Deixar de
lado as ideias ruins, parar de fazer coisas erradas, parar de magoar
quem gosta de mim, foram passos importantes do meu desenvolvimento. E
devo isso, em grande parte, ao esforço de tentar fazer a coisa certa
a que passei a me dedicar.
Uma
coisa que eu diria a quem foi ou é vítima de bullying, é que tudo
passa. Pode parecer que o pesadelo não vai acabar nunca, mas um dia
ele acaba sim. Com o tempo as fases passam e seguimos em frente.
Temos sempre que enfrentar as situações que surgem em nossa vida
dando o melhor de nós, fazendo tudo da forma mais inteligente e
correta possível. Aja sempre da melhor forma possível para
enfrentar o que lhe atormenta. Mas nada será suficiente para nos
livrar totalmente do sofrimento. Então é melhor ter resignação e
seguir em frente. Sempre. Quando as coisas ficarem realmente feias,
procurar ajuda e às vezes tomar atitudes drásticas. Fazer o que for
preciso ser feito no momento. Mas depois que tudo passar o tempo se
encarregará de cobrir tudo com as areias do esquecimento. E se as
lembranças forem dolorosas demais para serem apagadas, temos que nos
apegar no que temos para fazer hoje. Nas nossas obrigações, nos
nossos deveres. Fazer o certo mesmo que seja no piloto automático
por tempo indeterminado. Mais cedo ou mais tarde as coisas mudam e a
situação se torna mais favorável. Basta não parar de andar e não
pisar fora da linha. Seguir sempre andando para frente e deixando o
tempo fazer o seu trabalho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário